É difícil situar no tempo o meu primeiro contacto com os livros. Lembro-me de ter livros desde sempre, de brincar com eles, eram de pano os primeiros, liam-mos, eu memorizava-os e fingia que os lia. Como faz hoje a minha filha de três anos.
As histórias, contadas ou cantadas, foram uma constante ao longo da primeira infância. Pela voz da minha mãe, inevitavelmente, das minhas tias – são muitas.
Foi assim, claro, que conheci o Capuchinho Vermelho, a Cinderela, Os Três Porquinhos e que aprendi a ter medo do lobo mau. Algumas histórias assustavam-me, como João e Maria e uma outra a que chamavam Rola, Rola Cabacinha. Uma tia alterava-lhe piedosamente o final, por achar, também ela, que a criada que lha contara exagerara na fidelidade ao original.
Os primeiros livros que li foram, inevitavelmente, os da Anita. Foram os meus favoritos durante muito tempo, não só para ler, mas também para oferecer às amigas nos seus aniversários.
Nas manhãs de sábado, deliciava-me à roda das mesas de uma livraria desaparecida há quase trinta anos, escolhendo o livro dessa semana.
Eu, a minha irmã e as primas trocávamo-los, depois, o que nos permitia expandir a biblioteca.
Os livros da colecção Formiguinha tinham o tamanho ideal: iam, aos seis de cada vez, no bolso da bata, para ler durante o recreio, no Colégio – e tinham a dimensão certa também quanto ao texto em si. Evitavam-me a vergonha do mau jeito para participar nas brincadeiras mais “físicas” das amigas e davam-me o conforto de uma pausa mais “à minha maneira”.
Como todas as meninas da minha geração, li toda a Condessa de Ségur, que havia deliciado as minhas tias, também, no seu tempo, e devorei a Enid Blyton: Os Cinco, Os Sete, As Gémeas… À mistura com os contos de Andersen, o preferido durante muitos anos, tantos que ainda hoje ocupa um lugar especial, Grimm, as fábulas de La Fontaine.
Mais tarde, O Principezinho fez as minhas delícias: reli-o vezes sem conta, coleccionei-o em todas as línguas – numas li, noutras não, claro. Marcava maratonas de leitura com as amigas: “Começamos todas às nove. Amanhã contamos a que horas acabámos.” Os telemóveis, as mensagens, os mails, eram uma realidade nem sequer sonhada.
Ainda durante a adolescência, passei por Júlio Dinis e algumas coisas de Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, desta vez pela mão do meu pai, mas também pela curiosidade que uma lombada me suscitava, entre tantas, numa prateleira. Ou pelo bem que me sabia ler o que o avô tinha lido, à luz da vela.
O ponto de viragem nas minhas leituras aconteceu numa aula de Filosofia, no 10º ano – tinha eu quinze anos. O professor desafiou-me a ler A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. Digo que me desafiou porque foi isso mesmo que ele fez: “Não sei se vais conseguir.” Não apenas consegui: devorei. E as minhas leituras mudaram de rumo. Li todos os livros do Kundera e daí passei para uma série de outros autores – quase sempre estrangeiros – que escolhia por pertencerem à mesma colecção e terem títulos chamativos, ou por sugestão de professores, muitas vezes, mas sobretudo de um livreiro amigo, que foi o maior amante de livros que conheci. E acertava sempre.
Na altura em que estalou a polémica em torno de Os Versículos Satânicos, de Salman Rushdie, e na indisponibilidade deste título em tradução portuguesa, comecei por outros dois do mesmo autor: Vergonha e Os Filhos da Meia-Noite. Pela mesma altura, li O Perfume, de Patrick Süskind, que continuo a considerar um dos mais belos romances. (Tenho muitos nesta categoria…)
Gabriel García Márquez entrou na minha vida com O Amor nos Tempos de Cólera, que já reli umas vezes. Depois, Cem Anos de Solidão e só mais tarde, quando comecei a frequentar a Feira do Livro do Porto, conheci os seus contos e novelas. Não vou citar títulos: li todos. Encontrava-os já à saída da feira, numa pequenina banca da Gradiva e excedia sempre o orçamento que impusera a mim própria à entrada. Posso dizer que é o meu autor preferido. Lê-lo é como tomar o pequeno-almoço sobre um enorme relvado de frente para o mar das Caraíbas. É assim que imagino o sítio onde ele escreve.
Por gostar tanto dos seus livros, cheguei a outros latino-americanos, também sob a égide do realismo mágico: Carlos Fuentes, Isabel Allende, Mário Vargas Llosa.
William Somerset Maugham parece-me o exemplo maior de que escrever bem é escrever simples. Os seus livros, assim como os de García Márquez, embora em estilos muito diferentes, juntam o melhor de dois mundos: contam belíssimas histórias, escritas de forma magistral.
Mais recentemente, A História de Lucy Gault, de William Trevor, Memórias de um Anão Gnóstico, de David Madsen, A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón, As Velas Ardem até ao Fim, de Sándor Márai, e Gaspar, Belchior e Baltazar, de Michel Tournier, foram livros que me marcaram, também.
Entretanto, comecei a perceber que o Inglês que ensino (quinto e sexto anos de escolaridade) é muito pouco para manter viva uma língua estrangeira. Percebi que eu, que estudei Shakespeare na Faculdade, um dia não saberia Inglês suficiente para fazer check-in num hotel, para pedir uma refeição num restaurante… Decidi que não leio traduções se a língua de partida for o Inglês. E só tenho a ganhar. Uma tradução, muitas vezes, parece-me impressa em papel vegetal, através do qual se vê o texto original. E isso é terrível. Outras vezes deturpa o original, como que o recria. E não para melhor, pelo menos no caso de Lolita, de Vladimir Nabokov, em que abandonei a tradução e optei pela versão inglesa. Quando leio uma tradução, não sei porquê, dou comigo a tentar adivinhar as palavras que o autor usou, em Inglês. É impossível ler assim…
Quanto aos contos, que prefiro em alturas de mais trabalho, em que tenho menos disponibilidade intelectual para me dedicar à complexidade de um romance e da sua galeria de personagens, e depois de García Marquez, que vem sempre à cabeça, gosto dos autores russos, sobretudo de Tchékov.
Não me preocupa que me acusem de ser uma devoradora de livros – na verdade, é isso mesmo que sou. Sou selectiva no que diz respeito ao que leio, mas leio muito. Sinto um imenso prazer no acto da leitura de boas histórias, bem contadas. Não raras vezes, ofereceram-me livros de autores que não conhecia. Em conversa com o tal livreiro de quem já falei, e cujo nome me parece que não devo citar, ouvia-o sentenciar: “Escreve a metro!”. Foi assim que alguns livros acabaram por permanecer na prateleira. Talvez um dia chegue a sua vez.
Já disse tanto e falta falar de tantos livros, de tantos autores. Faltam, por exemplo, os portugueses que comecei a ler nos tempos de Faculdade, sugeridos por professores, oferecidos pelos meus pais, escolhidos através de críticas que lia em revistas, em jornais, e de que devo destacar Vergílio Ferreira, José Saramago, Jorge de Sena, Eugénio de Andrade – estes dois já no campo da poesia.
Fica para outra vez.