O guarda-chuva

“Contos para Crescer” é como um guarda-chuva.
Quer dizer: há vários projectos, cada um com o seu nome, de acordo com as suas especificidades. No seu conjunto, formam o projecto “Contos para Crescer”. Assim como se estivessem protegidos pelos “Contos para Crescer”, como um guarda-chuva.
Então temos:
“Hora do Conto”, a implementar no próximo ano lectivo, nos Jardins de Infância e nas Escolas Primárias;
“Conto Contigo”, que já se implementou este ano, nos sextos anos, que foi o ponto de partida de tudo isto e que vai crescer;
“Ler para escrever a Alma”, a Oficina de Leitura e Escrita, para todos os que quiserem (nome provisório – aceitamos sugestões!).
É mesmo como um guarda-chuva.

Theo, o contador de histórias

Uma vez por semana, Theo, o contador de histórias, punha-se a caminho da aldeia para comprar pão fresco.
Noutros tempos ficava contente quando este dia chegava mas, de há algum tempo para cá, tinha-se tornado uma tortura.
Não que, com a idade, as pernas lhe pesassem. Não, Theo ainda conseguia fazer longas caminhadas. Continuava até a ir ao seu lugar preferido, lá em cima nas montanhas, sempre que tinha tempo.
Só que, à entrada da aldeia, Theo era sempre recebido por um bando de crianças aos risinhos:

“Contador de histórias ha, ha, ha!
Contador de histórias, hi, hi, hi!”

Theo desaparecia então o mais rápido possível para dentro da padaria. Mas as crianças esperavam até ele voltar a aparecer com um pão debaixo do braço.
Theo apressava-se a deixar a aldeia tão depressa quanto podia, perseguido pelos risos trocistas das crianças.
Noutros tempos, Theo tinha de contar primeiro muitas histórias até as crianças o deixarem regressar à montanha.
Porque Theo fora o contador de histórias mais maravilhoso de toda a região. Um dia, porém, esqueceu todas as suas histórias. Ninguém sabe como é que aquilo aconteceu, nem mesmo Theo.
Sentado no quarto, Theo pensava tristemente no tempo em que as crianças ainda gostavam dele.
— Nunca mais volto à aldeia — disse para si mesmo. — Prefiro morrer à fome.
Nas semanas seguintes, as crianças esperaram por Theo em vão à saída da aldeia. Regressaram a casa de cabeça baixa e pensavam para si: “Se calhar, fizemos Theo zangar-se.”
Entretanto, Theo tinha gasto todas as suas reservas e a fome já fazia a barriga dar horas.
— Não, nunca mais volto à aldeia — repetia constantemente para si mesmo.
Quando, por fim, o estômago vazio começou a doer-lhe, Theo foi à floresta apanhar cogumelos e frutos silvestres.
Vagueou por ali e acabou por esquecer completamente o que tinha ido procurar. Estava demasiado ocupado a pensar nas suas antigas histórias, mas a cabeça estava tão vazia como o estômago. As antigas histórias tinham sido contadas e há muito esquecidas.
Triste, deitou-se no musgo macio e adormeceu.
Quando acordou, Theo pensou ainda estar a dormir, pois diante do seu nariz estava de facto um homenzinho muito pequeno!
— És algum duende? — perguntou Theo.
— Claro! — respondeu o duende.
— Mas eles só existem nas histórias — disse Theo.
— Hum — fez o duende, coçando o nariz.
Depois de se ter coçado o suficiente, o duende perguntou:
— Tu és Theo, o contador de histórias que já não sabe histórias nenhumas, não és?
— Podes rir-te à vontade de mim, que já estou habituado — resmungou Theo.
Mas não era isso que o duende queria, pois ele adorava histórias, e prometeu a Theo que iria ajudá-lo. E quando os duendes prometem alguma coisa, costumam cumprir.
O duende remexeu nos bolsos das calças e tirou de lá um botão partido.
— Toma este botão mágico. Se o lançares três vezes ao ar, vais lembrar-te de novas histórias — disse o duende.
— A sério? — perguntou Theo.
— Claro — respondeu o duende. — Confia no botão!
Theo agradeceu ao duende e pôs-se imediatamente a caminho da aldeia. Mas quando finalmente chegou, já a lua estava no céu e todos dormiam.
“Que pena”, pensou Theo. “Queria tanto experimentar já o botão!
Viu então um gato velho sentado na beira da fonte.
“Talvez não seja mau treinar primeiro”, pensou Theo. Pegou no botão e lançou-o três vezes ao ar. Para seu espanto, sem ter de pensar muito, as histórias começaram simplesmente a brotar-lhe dos lábios.
Quando fez uma pausa e levantou os olhos, viu que já não estava sozinho. Todos os animais da aldeia tinham vindo escutá-lo. Até o velho touro se tinha escapado para vir ouvir as histórias, pois já conhecia Theo de antigamente.
Na manhã seguinte, ia na aldeia uma tal azáfama, que mais fazia lembrar um formigueiro. Todos estavam ocupados a caçar os seus animais e até as crianças tinham de ajudar. Só quando todos os animais se encontravam novamente nos currais e nas pastagens, é que as crianças repararam em Theo sentado na beira da fonte.
Theo e as crianças ficaram a olhar-se em silêncio durante algum tempo. Mas de repente um rapazinho começou a rir:

“Contador de histórias ha, ha, ha!
Contador de histórias, hi, hi, hi!”

E, a uma só voz, todas as crianças começaram:

“Contador de histórias ha, ha, ha!
Contador de histórias, hi, hi, hi!”

Desta vez Theo não fugiu mas continuou sentado e disse com uma voz suave:
— Vinde cá, que eu conto-vos uma história.
Agora foram as crianças que fugiram a sete pés.
— Vinde cá! Gostava de vos contar uma história! — gritou Theo, mas as crianças não se atreviam a sair do seu esconderijo; por isso, Theo contou as suas novas histórias ao gato, o único animal que tinha ficado à beira dele.
As crianças escutavam o contador de uma distância segura mas, quando ouviram as suas belas histórias, o medo desapareceu e, tal como na noite anterior, em pouco tempo Theo ficou rodeado de público. Os habitantes da pequena aldeia voltaram a ouvir as crianças pedir como outrora:
— Conta outra história! Não pares!
E o contador de histórias inventava sempre novas histórias maravilhosas.
A partir daquele dia, Theo voltou a visitar a aldeia e as crianças com mais frequência.
Certo dia, em que Theo estava rodeado de crianças e queria inventar outra história, descobriu, horrorizado, que o botão mágico tinha desaparecido. Theo começou a transpirar e não conseguiu dizer uma palavra.
Aquele triste silêncio foi interrompido subitamente por um risinho estridente. Assustado, Theo levantou-se.
Quando viu o duende sentado no muro da fonte, soltou um suspiro de alívio.
— Hi, hi, hi! Não era nenhum botão mágico o que te dei! Só que na altura não me ocorreu nada melhor. As histórias, foste tu que as inventaste sozinho. Só tu! — ria-se o duende.
Theo olhou atónito para o duende e perguntou em voz baixa:
— A sério?
— Claro!
Theo reuniu toda a coragem e começou uma nova história, uma história ainda mais bonita do que as anteriores.
A partir daquele dia, Theo não precisou de nenhum botão mágico para contar histórias. Do que precisava era de muitas crianças que o ouvissem e pedissem:
— Oh, por favor, não pares! Conta outra história!

Dieter Konsek
Theo, der Geschichtenerzähler
Wien, Picus Verlag, 1997
Tradução e adaptação

O grilo de Barcelona

Andávamos de automóvel em Barcelona. Milhares de carros andam todos os dias em Barcelona. Barcelona é uma grande cidade. São quilómetros de ruas largas. Muitas, cheias de flores e de grandes prédios de pedra tão trabalhada, cheia de recortes como as próprias flores. Ruas por onde andou Picasso, aquele pintor tão grande que em Barcelona não coube.
O trânsito tinha parado. Aparecera a luz vermelha para mandar parar todos os carros. E tudo parou.
Era noite.
Nós íamos num táxi – um táxi cor de laranja e negro como são todos os táxis em Barcelona. Conforme é o dia de descanso do táxi – motorista e motor – está escrito, por fora, logo abaixo da capota: Lunes (segunda-feira), Lu; Martes (terça-feira), M; Miercoles (quarta-feira), Mi; Jueves (quinta-feira), J; Viernes (sexta-feira), Vi; Sabado (sábado), S; Domingo (domingo), D.
Mas não devia ser o dia de descanso no mundo dos grilos porque a minha tia, com quem eu ia no carro com o meu primo, disse:
— É um grilo! Escutem…
Numa cidade tão grande! Naquele silêncio, no meio da paragem de todos os carros, a voz pequenina do grilo erguia-se na noite toda iluminada de estrelas e das cores dos anúncios luminosos.
— Um grilo!
Todos sorrimos encantados. Vimos o motorista sorrir, reflectido no espelhinho rectangular do táxi.
— Que quieren ustedes! El pobrecito trabaja también!
O pobrezito, o grilo, trabalhava como uma caixinha de música antiga, ou o músico de uma grande orquestra que tocasse uma música para todo o mundo. Ou até como um pequenino transístor de pilhas ali sobre o tapete de relva que ficava ao lado do nosso táxi.
Tapete de relva que circundava uma estátua de pedra branca – estátua de um Poeta que também cantara versos de alegria ou de tristeza, da vida de todos nós.
Mas a estátua perdia-se na noite, nos milhares de estrelas do céu, nos anúncios, nas janelas iluminadas, às quais, de vez em quando, se encostava alguém a receber o fresco da noite.
Mas foram uns segundos. A luz mudou para verde. Os carros recomeçaram a andar. Um barulho ensurdecedor ao longo das longas e largas ruas.
O grilo já não se ouvia. As suas asas brilhantes continuariam a estremecer sobre a relva húmida e verde, pequenina caixa de música, pequenino músico de uma orquestra, ou até pequeno transistor, minúsculo, de trazer no bolso.
Eu tinha vindo de uma ilha, sobre o oceano Atlântico, na qual havia tantos grilos e, talvez por haver tantos, ali o seu canto não me espantava.
E, naquela rua de Barcelona, entre uma luz vermelha e outra verde, o canto dum pequenino grilo dizia-me, e a todos que íamos no carro, um segredo muito belo, que não tinha palavras portuguesas nem castelhanas, nem abreviaturas como as dos dias da semana escritos por fora dos táxis negros e cor de laranja. Que não era escrito em língua nenhuma senão a do coração dos homens. Era o pequenino grilo dos montes da ilha solitária do Atlântico, ou daquela grande cidade já perto de França.
O sorriso do motorista no espelhinho, esta capacidade de todos nos entendermos, de todos sermos irmãos, amigos. De escutarmos, encantados, um pequenino grilo no silêncio de segundos entre a luz vermelha e a verde. Numa cidade de três milhões de pessoas.
Amigo, que me lês, talvez digas que eu não te contei uma história. Mas tu próprio, que és um futuro Homem, fraterno e bom, contarás aos teus filhos esta história que não é fábula imaginada e que se chama «O Grilo de Barcelona». Lunes, Martes, Miercoles, Jueves, Viernes, Sabado, Domingo… uma história de todos os tempos, de todos os dias. A história do silêncio e de um pequenino cantar.

Matilde Rosa Araújo
O Sol e o Menino dos Pés Frios
Lisboa, Livros Horizonte Lda, 2001

O elefante acorrentado

— Não consigo — disse-lhe. — Não consigo!
— Tens a certeza? — perguntou-me ele.
— Tenho! O que eu mais gostava era de conseguir sentar-me à frente dela e dizer-lhe o que sinto… Mas sei que não sou capaz.
O gordo sentou-se de pernas cruzadas à Buda, naqueles horríveis cadeirões azuis do seu consultório. Sorriu, fitou-me olhos nos olhos e, baixando a voz como fazia sempre que queria que o escutassem com atenção, disse-me:
— Deixa-me que te conte…
E sem esperar pela minha aprovação, o Jorge começou a contar.
Quando eu era pequeno, adorava o circo e aquilo de que mais gostava eram os animais. Cativava-me especialmente o elefante que, como vim a saber mais tarde, era também o animal preferido dos outros miúdos. Durante o espectáculo, a enorme criatura dava mostras de ter um peso, tamanho e força descomunais… Mas, depois da sua actuação e pouco antes de voltar para os bastidores, o elefante ficava sempre atado a uma pequena estaca cravada no solo, com uma corrente a agrilhoar-lhe uma das suas patas.
No entanto, a estaca não passava de um minúsculo pedaço de madeira enterrado uns centímetros no solo. E, embora a corrente fosse grossa e pesada, parecia-me óbvio que um animal capaz de arrancar uma árvore pela raiz, com toda a sua força, facilmente se conseguiria libertar da estaca e fugir.
O mistério continua a parecer-me evidente.
O que é que o prende, então?
Porque é que não foge?
Quando eu tinha cinco ou seis anos, ainda acreditava na sabedoria dos mais velhos. Um dia, decidi questionar um professor, um padre e um tio sobre o mistério do elefante. Um deles explicou-me que o elefante não fugia porque era amestrado.
Fiz, então, a pergunta óbvia:
— Se é amestrado, porque é que o acorrentam?
Não me lembro de ter recebido uma resposta coerente. Com o passar do tempo, esqueci o mistério do elefante e da estaca e só o recordava quando me cruzava com outras pessoas que também já tinham feito essa pergunta.
Há uns anos, descobri que, felizmente para mim, alguém fora tão inteligente e sábio que encontrara a resposta:
O elefante do circo não foge porque esteve atado a uma estaca desde que era muito, muito pequeno.
Fechei os olhos e imaginei o indefeso elefante recém-nascido preso à estaca. Tenho a certeza de que naquela altura o elefantezinho puxou, esperneou e suou para se tentar libertar. E, apesar dos seus esforços, não conseguiu, porque aquela estaca era demasiado forte para ele.
Imaginei-o a adormecer, cansado, e a tentar novamente no dia seguinte, e no outro, e no outro… Até que, um dia, um dia terrível para a sua história, o animal aceitou a sua impotência e resignou-se com o seu destino.
Esse elefante enorme e poderoso, que vemos no circo, não foge porque, coitado, pensa que não é capaz de o fazer.
Tem gravada na memória a impotência que sentiu pouco depois de nascer.
E o pior é que nunca mais tornou a questionar seriamente essa recordação.
Jamais, jamais tentou pôr novamente à prova a sua força…
— E é assim a vida, Damião. Todos somos um pouco como o elefante do circo: seguimos pela vida fora atados a centenas de estacas que nos coarctam a liberdade.
Vivemos a pensar que «não somos capazes» de fazer montes de coisas, simplesmente porque uma vez, há muito tempo, quando éramos pequenos, tentámos e não conseguimos.
Fizemos, então, o mesmo que o elefante e gravámos na nossa memória esta mensagem: «Não consigo, não consigo e nunca hei-de conseguir.»
Crescemos com esta mensagem que impusemos a nós mesmos e, por isso, nunca mais tentámos libertar-nos da estaca.
Quando, por vezes, sentimos as grilhetas e as abanamos, olhamos de relance para a estaca e pensamos:
Não consigo e nunca hei-de conseguir.
O Jorge fez uma longa pausa. Depois, aproximou-se, sentou-se no chão à minha frente e prosseguiu:
— É isto que se passa contigo, Damião. Vives condicionado pela lembrança de um Damião que já não existe, que não foi capaz.
— A única maneira de saberes se és capaz é tentando novamente, de corpo e alma… e com toda a força do teu coração!

Jorge Bucay
Deixa-me que te conte. Os contos que me ensinaram a viver
Lisboa, Pergaminho, 2004