Ler

Ler muito.
Ler quase tudo
Ler com os olhos, os ouvidos, com o tacto, pelos poros e demais sentidos.
Ler com razão e sensibilidade.
Ler desejos, o tempo, o som do silêncio e do vento.
Ler imagens, paisagens, viagens.
Ler verdades e mentiras.
Ler para obter informações inquietantes, dor e prazer.
Ler o fracasso, o sucesso, o ilegível, o impensável, as entrelinhas.
Ler na escola, em casa, no campo, na estrada, em qualquer lugar.
Ler a vida e a morte.
Saber ser leitor tendo o direito de saber ler.
Ler simplesmente ler.

Edith Chacon Theodoro

Bridget Peixotto

Num período de dois anos, entre 1913 e 1915, a América seguiu atentamente uma dura batalha judicial que haveria de mudar radicalmente a forma como as mulheres eram encaradas nos locais de trabalho.

Uma professora de Nova Iorque fora despedida a 22 de Abril de 1913 por estar grávida, com as autoridades escolares a defenderem o despedimento com base em ‘negligência do dever com o propósito de dar à luz’.
Numa atitude rara para a época, a professora não aceitou a decisão dos seus superiores e levou o caso a tribunal. Dois anos depois, o processo acabaria por instituir as bases de um direito que alastraria por todo o mundo: a licença de parto. Esta professora, pioneira na luta pelos direitos laborais das mulheres chamava-se Bridget Peixotto e era membro da comunidade de judeus nova-iorquinos de ascendência portuguesa.

Bridget casara a 12 de Fevereiro de 1912 com Francis Raphael Maduro Peixotto, um corretor de seguros — que, nascido em 1860, era 20 anos mais velho que ela. Quando casou, Bridget Peixotto trabalhava já há 18 anos no sistema de ensino primário nova-iorquino, tendo passado com distinção os exames de promoção aos escalões mais elevados do magistério primário.

No ano lectivo de 1912/1913, Bridget e Francis Maduro Peixoto moravam no número 41 de St. Nichols Terrace, em Manhattan, ela era professora principal da Escola Pública 14, em Thongs Neck, Bronx, auferindo um salário anual de 2400 dólares (o que daria hoje qualquer coisa como 4500 dólares mensais).

Em Fevereiro de 1913, Bridget Peixotto adoece gravemente enquanto está grávida e notifica de imediato as autoridades escolares, tal como obrigava a lei. Na altura, no entanto, as professoras não podiam continuar na profissão depois de darem à luz, uma vez que a sociedade não via com bons olhos que uma mulher casada, e mãe de filhos, trabalhasse fora de casa.

Bridget Peixotto acabou por ser suspensa e seguidamente despedida — enquanto estava ainda no hospital depois de ter sido mãe de Helen Esther Peixotto — por ‘negligência do dever com o propósito de dar à luz’.
Não se dando por vencida, Bridget Peixotto desafia a acusação e a própria ideia de que uma mulher não poderia continuar a ensinar depois de ser mãe. Citada na página 7 da edição de 29 de Maio de 1913 do New York Times, ela afirma:

“Contestarei o caso até ao fim. O Conselho Educativo, ao permitir que mulheres casadas ensinem ao mesmo tempo que as proíbe de cumprirem uma função fundamental do casamento, está a agir de forma ilegal. É absolutamente imoral e não será apoiado por nenhum tribunal. Em nenhum lado se pode proclamar a maternidade como uma negligência do dever. É permitido às mulheres casadas ensinarem nas escolas públicas, mas nega-se-lhes tempo para que tenham filhos.”

Em primeira instância, a verdade é que o Conselho Educativo manteve a decisão, votando 27 contra 5 a favor do despedimento de Bridget Peixotto. É então que ela avança para os tribunais. Depois de ver o processo arrastar-se infinitamente, com várias decisões judiciais a seu favor, por ordem do Supremo Tribunal, em 1914 Bridget Peixotto faz uma exposição ao Comissário Estadual para a Educação, John Huston Finley, que anos mais tarde seria director do New York Times. Em resposta, Finley dá-lhe razão e escreve: ‘A Senhora Peixotto foi acusada de negligência do dever, mas não foi declarada culpada de negligência — foi sim declarada culpada de ter dado à luz.’

Finalmente, em Janeiro de 1915, numa decisão histórica, John Finley dá ordens para que Bridget Peixotto seja reconduzida nas suas funções prévias com salário pago por completo. Três anos depois, em 1918, torna-se directora da escola, mantendo-se no magistério primário em Nova Iorque até se reformar, em 1948, quando atinge a idade limite de 70 anos.

Bridget Peixotto faleceu a 10 de Abril de 1972, em Nova Iorque, aos 92 anos de idade, deixando um legado invejável. No obituário que lhe dedicou dois dias após o seu falecimento, o New York Times afirmava que ela era ‘responsável pela institucionalização da licença de parto por todo o país’ e pelo mundo: ‘O seu caso permitiu que largos milhares de mulheres pudessem tirar uma licença para dar à luz. A decisão motivou também alterações no sistema do sector privado, fazendo com que hoje seja perfeitamente normal que uma mulher possa manter o emprego quando fica grávida.’

Eu fiz a diferença


Houve muitos aspectos muito compensadores na actividade de leitura recreativa que desenvolvi com as minhas turmas de sexto ano, no ano passado. O envolvimento dos alunos, que aderiram em massa, foi surpreendente. Tanto, que culminou com a criação deste blogue, de uma página no Facebook com o mesmo nome e de uma Oficina de Leitura cuja principal actividade é a leitura semanal de contos, pelos alunos, a crianças mais novas (pré-escolar e 1º ciclo), no sentido de fazer despertar nos colegas o amor que eles descobriram que têm pela leitura.

O envolvimento dos pais, que pediam novos contos todas as semanas, várias vezes por semana, foi mais surpreendente ainda. Porque têm apenas a escolaridade obrigatória – se tanto – porque passaram toda a vida trabalhando em fábricas ou na construção civil. Porque “a gente trabalha tanto que até se esquece das coisas de que gosta”, como me dizia uma mãe, no final do ano.

Mas, de tudo, o que não posso esquecer são estas palavras, textuais, de uma aluna: “Todos os professores dizem que nós temos de ler, que precisamos de ler mais. Mas a professora não. A professora quis saber, preocupou-se, fez alguma coisa. E agora nós gostamos de ler, lemos muito e gostamos.” A mesma aluna que agora me chama “professora de leitura” – sem sarcasmo, sem ironia, apenas como quem sabe que é assim que me recordará – como a professora que a ensinou a gostar de ler.

Na verdade, o que eu fiz nem sequer me deu muito trabalho. Apenas fotocopiei um conto por semana, para eles lerem em casa com os pais. Não escrevi os contos, não os digitalizei – tinha-os no “Cofre” e fotocopiei-os. Um por semana. Não é complicado.

Por que é que outros professores são tão reticentes a tentar esta estratégia? Por que é que partem do princípio que não funcionará? Ainda nem sequer experimentaram.

Laura flor

— Laura Flor, vem cá!

A Laura veio e era como uma flor. Delicada e suave flor igual ao nome.

Depois, foi a Maria Clara de tranças belas, castanhas, nariz arrebitado, sorriso claro – e Clara se chamava. A apertar a bata, na cintura, um cinto feito de papéis de lustro de cor, arco-íris naquela cintura de menina.

Depois, a Maria Odete, figurinha que parece ter saído de uma jarra, sempre com muitos cuidados a andar, a falar, jeito que lhe ficou de estar dentro da jarrinha. Uns olhos orientais, um sorriso que é quase choro, franjinha negra sobre os olhos à flor da pele.

— Maria Odete, se eu fosse ao Oriente e encontrasse uma flor, lembrava-me logo de ti!

— Pois é! Ela tem os olhos em bico! — diz uma companheira, pronta a tirar conclusões.

Maria Odete começa a chorar. A caírem-lhe as lágrimas devagarinho, brilhantes, também com cuidado, lentas, luminosas.

Eu não sei o que vou dizer, mas digo. Não sei o que disse, mas Maria Odete sorri. Devagarinho, também as lágrimas acabam de cair.

A que disse que a Maria Odete tinha os olhos em bico é tal e qual uma maçã dourada, redonda, toda muito por igual: maçã suspensa, nítida, decidida.

As meninas todas olharam com admiração a flor do Oriente.

Eu é que não devia dizer estas coisas, eu é que tenho a culpa – pensar alto. Mas havia reparado ontem na Maria Odete a dizer-me que não tinha livro nenhum.

— Foi tudo na cheia de ontem, minha senhora…

— E nunca mais os viste?

— Nunca mais! A minha bata, apanhei-a hoje na valeta… Até o dinheiro que ficou está a secar, preso por molas.

Diz isto com uma vozinha de quem canta dentro da tal jarra.

— Sabe a senhora? As minhas vizinhas dizem que vão reclamar ao Ministro…

—…?

— Porque não arranjaram aquele cano… É por isso que eu hoje não trago bata nem tenho livro…

— …

— … nem tenho dinheiro para comprar outro…

Diz isto tudo muito serena, com um ar de quem está a contar a história mais natural deste mundo. História tão cinzenta que na voz dela até parece um conto de fadas ao contrário.

A menina linda com os olhos à flor da pele, transparentes e escuros ao mesmo tempo. Puros. A infância desarmada.

— Senhor Ministro, devia ter mandado arranjar o cano. Não tenho livro, não tenho bata, o pouco dinheiro está a secar, preso por molas…

Tão serena. As lágrimas vagarosas de hoje – como meninas que saíram a passear para uma ilha imaginária.

Senhor Ministro, desça abaixo ao seu jardim…

Mas o Senhor Ministro não ouviu. Não desceu. Sabe lá o que é ter o pouco dinheiro preso por molas e os livros a irem na cheia.

E deve ter aprendido na escola, no liceu, que Camões salvou os Lusíadas a nado. E que deixou o fim do poema para Laura Flor escrever. Com uma peninha de rouxinol.

Matilde Rosa Araújo
As botas de meu pai
Lisboa, Livros Horizonte, 1977

O Senhor Palha

Conto japonês

Era uma vez, há muitos e muitos anos, é claro, porque as melhores histórias passam-se sempre há muitos e muitos anos, um homem chamado Senhor Palha. Ele não tinha casa, nem mulher, nem filhos. Para dizer a verdade, só tinha a roupa do corpo. Ora o Senhor Palha não tinha sorte. Era tão pobre que mal tinha para comer e era magrinho como um fiapo de palha. Era por esse motivo que as pessoas lhe chamavam Senhor Palha.

Todos os dias o Senhor Palha ia ao templo pedir à Deusa da Fortuna que melhorasse a sua sorte, mas nada acontecia. Até que um dia, ele ouviu uma voz sussurrar:

— A primeira coisa em que tocares quando saíres do templo há- de trazer-te uma grande fortuna.

O Senhor Palha apanhou um susto. Esfregou os olhos, olhou em volta, mas viu que estava bem acordado e que o templo estava vazio. Mesmo assim, saiu a pensar: “Terei sonhado ou foi a Deusa da Fortuna que falou comigo?” Na dúvida, correu para fora do templo, ao encontro da sorte. Mas, na pressa, o pobre Senhor Palha tropeçou nos degraus e foi rolando aos trambolhões até o final da escada, onde caiu por terra. Ao levantar-se, ajeitou as roupas e percebeu que tinha alguma coisa na mão. Era um fio de palha.

“Bom”, pensou ele, “uma palha não vale nada, mas, se a Deusa da Fortuna quis que eu o apanhasse, é melhor guardá-lo.”

E lá foi ele, com a palha na mão.

Pouco depois, apareceu uma libélula zumbindo em volta da cabeça dele. Tentou afastá-la, mas não adiantou. A libélula zumbia loucamente ao redor da cabeça dele. “Muito bem”, pensou ele. “Se não queres ir embora, fica comigo.” Apanhou a libélula e amarrou-lhe o fio de palha à cauda. Ficou a parecer um pequeno papagaio (de papel), e ele continuou a descer a rua com a libélula presa à palha. Encontrou a seguir uma florista, que ia a caminho do mercado com o filho pequenino, para vender as suas flores. Vinham de muito longe. O menino estava cansado, coberto de suor, e a poeira fazia-o chorar. Mas quando viu a libélula a zumbir amarrada ao fio de palha, o seu pequeno rosto animou-se.

— Mãe, dás-me uma libélula? — pediu. — Por favor!

“Bem”, pensou o Senhor Palha, “a Deusa da Fortuna disse-me que a palha traria sorte. Mas este garotinho está tão cansado, tão suado, que ficará certamente mais feliz com um pequeno presente.” E deu ao menino a libélula presa à palha.

— É muita bondade sua — disse a florista. — Não tenho nada para lhe dar em troca além de uma rosa. Aceita?

O Senhor Palha agradeceu e continuou o seu caminho, levando a rosa. Andou mais um pouco e viu um jovem sentado num tronco de árvore, segurando a cabeça entre as mãos. Parecia tão infeliz que o Senhor Palha lhe perguntou o que tinha acontecido.

— Hoje à noite, vou pedir a minha namorada em casamento — queixou-se o rapaz. — Mas sou tão pobre que não tenho nada para lhe oferecer.

— Bem, eu também sou pobre — disse o Senhor Palha. — Não tenho nada de valor mas, se quiser dar-lhe esta rosa ela é sua.

O rosto do rapaz abriu-se num sorriso ao ver a esplêndida rosa.

— Fique com estas três laranjas, por favor — disse o jovem. — É só o que posso dar-lhe em troca.

O Senhor Palha continuou a andar, levando três suculentas laranjas. Em seguida, encontrou um vendedor ambulante a puxar uma pequena carroça.

— Pode ajudar-me? — disse o vendedor ambulante, exausto. — Tenho puxado esta carroça durante todo o dia e estou com tanta sede que acho que vou desmaiar. Preciso de um gole de água.

— Acho que não há nenhum poço por aqui — disse o Senhor Palha. — Mas, se quiser, pode chupar estas três laranjas.

O vendedor ambulante ficou tão grato que pegou num rolo da mais fina seda que havia na carroça e deu-o ao Senhor Palha, dizendo:

— O senhor é muito bondoso. Por favor, aceite esta seda em troca.

E, uma vez mais, o Senhor Palha continuou o seu caminho, com o rolo de seda debaixo do braço.

Não tinha dado dez passos quando viu passar uma princesa numa carruagem. Tinha um olhar preocupado, mas a sua expressão alegrou-se ao ver o Senhor Palha.

— Onde arranjou essa seda? — gritou ela. — É justamente aquilo de que estou à procura. Hoje é o aniversário de meu pai e quero dar-lhe um quimono real.

— Bem, já que é aniversário dele, tenho prazer em oferecer-lhe a seda — disse o Senhor Palha.

A princesa mal podia acreditar em tamanha sorte.

— O senhor é muito generoso — disse sorrindo. — Por favor, aceite esta jóia em troca.

A carruagem afastou-se, deixando o Senhor Palha com uma jóia de inestimável valor refulgindo à luz do sol.

“Muito bem”, pensou ele, “comecei com um fio de palha que não valia nada e agora tenho uma jóia. Sinto-me contente.”

Levou a jóia ao mercado, vendeu-a e, com o dinheiro, comprou uma plantação de arroz. Trabalhou muito, arou, semeou, colheu, e a cada ano a plantação produzia mais arroz. Em pouco tempo, o Senhor Palha ficou rico.

Mas a riqueza não o modificou. Oferecia sempre arroz aos que tinham fome e ajudava todos os que o procuravam. Diziam que a sua sorte tinha começado com um fio de palha, mas quem sabe se não terá sido com a sua generosidade?

William J. Bennett
O Livro das Virtudes II – O Compasso Moral
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996

Balada da Neve

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente,
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho…

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria…
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho…

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança…

E descalcinhos, doridos…
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!…

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!…
Porque padecem assim?!…

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
– e cai no meu coração.

Augusto Gil
Luar de Janeiro