O Rouxinol do Imperador

rouxinol

Na China de outros tempos, certo imperador vivia no palácio mais extraordinário, todo de porcelana fina, de magnificência sem igual. O jardim circundante exibia as flores mais raras, e as que se distinguiam pela sua beleza tinham campainhas de prata que, tocando, chamavam a atenção de quem passava.
Tudo era maravilhoso no jardim do imperador. Estendia-se para longe, até à floresta de grandes árvores e lagos azuis que, por sua vez, descia até ao mar, de tal modo profundo que os grandes barcos ali passavam. Nos ramos das árvores habitava um rouxinol. Cantava tão bem que os pescadores, ao ouvi-lo, quase esqueciam o trabalho.
De toda a parte acorria gente a visitar a cidade, o palácio e os jardins do imperador. Achavam tudo maravilhoso, mas depois de ouvirem a extraordinária ave, diziam:
—O melhor de tudo é o rouxinol!
De regresso às suas terras, essa gente falava da cidade, do palácio e dos jardins. Os escritores e os poetas escreviam livros sobre tais maravilhas, dando sempre especial relevo ao rouxinol.
Estes livros correram mundo e alguns chegaram às mãos do imperador. Vestido de seda, sentado em belos cochins, lia com agrado o que se dizia dos seus domínios, mas, chegado ao fim, lá estava o remate:
— Entre tantas maravilhas, o rouxinol é a maior.
Um dia, o imperador mandou chamar o primeiro-ministro e disse-lhe:
— O que vem a ser isto? Como é possível existir, sem que eu o saiba, essa ave chamada rouxinol, que estes livros consideram o que há de melhor no meu império? Por que razão ainda não a vi?
— Nunca ouvi falar nela — respondeu o primeiro-ministro.
— Quero-a aqui esta noite, a cantar para mim. Só isto me faltava! O mundo inteiro sabe o que tenho, menos eu!
— Será cumprido o vosso desejo, real senhor — respondeu o primeiro-ministro, curvando-se. — Vou …
No palácio, ninguém conhecia o rouxinol. Por mais que perguntasse, nada conseguiu saber.
Voltou o primeiro-ministro ao imperador:
— Saiba Vossa Majestade que tal ave não existe. Deve ser invenção de quem escreveu esses livros!
— Não pode ser falso o que se diz nos livros enviados pelo meu amigo, o imperador do Japão. Portanto, quero aqui o pássaro esta noite, sob pena de toda a corte ser castigada!
De novo o primeiro-ministro subiu e desceu escadas, correu por aqui e por ali à procura de notícias do rouxinol, conhecido no mundo inteiro mas ignorado no palácio.
Por fim, encontraram na cozinha uma rapariga que exclamou:
— Oh, meu Deus! O rouxinol? Conheço-o muito bem! Quando, à noite, me dirijo para junto da costa, para levar a minha mãe os restos de comida que aqui me dão, oiço sempre essa maravilhosa ave, cujo doce cantar me traz lágrimas aos olhos.
— Pequena ajudante de cozinha — disse o primeiro-ministro — obterás o título de cozinheira, se me levares junto dele. Tenho de o trazer aqui esta noite!
Metade da corte (com medo do castigo, é claro) foi para a floresta à procura do rouxinol. No caminho ouviram uma vaca mugir. Certo cortesão, já radiante, exclamou:
— Ei-lo!
— Não, é uma vaca! — disse a rapariga. — Ainda estamos longe.
Daí a pouco ouviu-se o coaxar das rãs, nos pântanos.
— Encantador! — disse o capelão do palácio.
— Não, são as rãs a coaxar! — explicou a ajudante de cozinha. — Mas não tarda que o ouçamos.
Agora é ele! — disse a rapariga, daí a pouco. — Escutai, por favor!
De facto, o rouxinol cantava e todos viram um passarinho de cores discretas que, aos rogos da rapariga, cantou ainda melhor. E foi muito admirado.
Tendo consentido de boa vontade em mostrar a sua voz para deleite do imperador, foi recebido com grandes honras no palácio de porcelana, ao brilho de milhares de velas. Na grande sala onde o imperador se encontrava, colocaram um poleiro de ouro. Todos admiraram o seu canto mavioso.
O imperador tinha lágrimas nos olhos, de comovido, e foi esta a melhor recompensa para a ave. Nunca o esqueceria.
O êxito do rouxinol na corte foi extraordinário. E ficou decidido que o rouxinol ficaria na corte e teria uma gaiola só para ele. Tinha licença de dar um passeio duas vezes por dia e uma vez à noite, acompanhado de doze criados. Cada criado segurava uma fita de seda cuja ponta estava atada a uma das patas do passarinho. Passear nessas condições não devia ter mesmo graça nenhuma.
Certo dia chegou, endereçada ao imperador, urna grande caixa onde estava escrito: Rouxinol.
— Eis certamente outro livro sobre o célebre pássaro — disse o imperador.
Mas não era um livro. Dentro, vinha um rouxinol mecânico semelhante ao verdadeiro, coberto de diamantes, de rubis e de safiras. Quando lhe davam corda, cantava, movia a cauda e lançava chispas de luz. Trazia em volta do pescoço uma fita onde se lia: O rouxinol do imperador do Japão não passa de uma modesta imitação do rouxinol do imperador da China.
— Que lindo é! — exclamavam todos, entusiasmados, ao vê-lo e ouvi-lo.
— Ponham ambos a cantar ao mesmo tempo! — mandou o imperador.
Mas o pássaro verdadeiro cantava à sua maneira e o rouxinol mecânico cantava valsas.
Foi então resolvido que o rouxinol mecânico cantasse sozinho. Obteve grande sucesso, e repetiu, repetiu.
— Agora o rouxinol verdadeiro também tem de cantar — sugeriu o imperador.
Mas… onde estava ele? Ninguém se apercebeu de que voara pela grande janela aberta, em direcção à floresta.
Todos os cortesãos o censuraram:
— Que feia acção! Que ingrato! Não importa! Temos este que é bem melhor e mais bonito. Ao menos, com ele, sabemos o que vai seguir-se e podemos acompanhar a sua música. Com o outro era impossível, sempre diferente, inesperado.
O rouxinol cantava, cantava sem fadiga. Permitiu-se ao povo ver e ouvir aquela maravilha. Os pobres pescadores diziam:
— É lindo e canta bem, mas falta-lhe qualquer coisa …
Do verdadeiro rouxinol nunca mais houve notícias; já ninguém pensava nele.
Certa noite, estando o imperador deitado a deliciar-se com o canto do rouxinol mecânico, colocado em cima da mesa-de-cabeceira, ouviu-se um ruído “Tíup”! Partiu-se a corda do mecanismo; depois “Brrrr… ” e a música parou. O imperador saltou da cama, mandou vir o médico da corte, mas este não soube resolver a situação. Chamou-se então o relojoeiro, que consertou a corda e recomendou muita cautela, porque, com os parafusos gastos, podia quebrar- se novamente.
Foi grande o desgosto. O pássaro não podia agora cantar com frequência.
Cinco anos passaram.
Entre outros os cortesãos reinava a desolação, porque o seu amado imperador estava doente e não parecia ter hipóteses de cura. O sucessor fora já eleito.
Muitos choravam, enquanto outros ansiavam por aclamar aquele que viria.
O velho imperador, estendido na cama, pálido e frio, lutava com a morte. À sua volta, uma quantidade de caras estranhas parecia esperar espreitar por entre as dobras da cortina de veludo; umas tinham expressões de maldade, outras aparentavam simpatia. Representavam as boas e más acções que o imperador praticara. Este, no meio da aflição, só pedia:
— Música! Música! Quero música!
Mas ninguém dava corda ao pássaro mecânico, porque o imperador estava sozinho. Consideravam-no já morto, e os cortesãos preparavam o palácio para receber o sucessor.
— Canta, ave preciosa, canta! — pedia o imperador moribundo.
A ave continuava muda, e o imperador sentia-se morrer, esmagado pelo silêncio confrangedor.
De repente, eleva-se no ar, junto da janela aberta, uma voz deliciosa. Era o rouxinol que, num ramo lá fora, tinha ouvido os gritos de aflição do seu imperador e viera confortá-lo.
A medida que ele cantava, o imperador sentia-se mais leve, melhorava, voltavam-lhe as forças, regressava à vida.
— Obrigado! Obrigado, pássaro celestial! Reconheço a tua voz! Esqueci-te inteiramente, e tu vieste livrar-me da morte com as suas negras visões que me afligiam. Como poderei recompensar-te?
— Já fui recompensado, quando em tempos vi lágrimas nos teus olhos enquanto me escutavas — replicou delicadamente o rouxinol.
— Fica sempre junto de mim. Cantarás quando quiseres e quebrarei em mil bocados o pássaro mecânico!
— Não faças isso! — replicou o rouxinol verdadeiro. — Ele fez o que podia. Conser-va-o. Eu não posso instalar-me no palácio, mas virei, quando sentir desejos disso, e cantarei para ti, à noite, empoleirado neste ramo, junto da janela aberta, para te tornar feliz.
— Sim, farás como quiseres. O meu coração esperar-te-á sempre, para te receber com alegria e gratidão!
E quando os criados entraram, supondo encontrar o imperador já morto, viram-no, porém, sorrir e dizer calmamente:
— Bom dia!…

Hans Christian Handersen

e então… lemos.

Chronicles-of-narnia-map

 

Este ano tenho um quinto ano de Português… muito barulhento. E ainda por cima, como sou directora de turma deles, raro é o da em que não tenho uma queixa. Portam-se mal, pronto. Falam muito. Fazem barulho.

Podem, portanto, imaginar o meu espanto ao verificar que nas minhas aulas, cada vez mais se… ouvem as moscas. Não se ouvem moscas, que não as há, mas ouvir-se-iam, se as houvesse.

Hoje, por exemplo. Entrámos às oito e meia e, nada mais sentarem-se, comecei a ler.

Estamos a ler As Crónicas de Nárnia, comecei, naturalmente, pelo primeiro volume, O Sobrinho do Mágico, e a reacção deles está a ser… um sonho.

Não pare, professora!

Continue, por favor!

Só a primeira página do capítulo…

Só mais um bocadinho…

Não temos um livro para cada aluno, nem sequer um livro em cada mesa, que a biblioteca da escola não chega a tanto. Eu leio, eles ouvem. E ouvem deliciados.

Este livro é riquíssimo. Não apenas pelo trabalho de estímlo à imaginação, mas também pela linguagem. Isto é Literatura, assim, com letra maiúscula, no mais puro sentido do termo. Não é de admirar que faça as delícias de sucessivas gerações e que conheça várias adaptações ao cinema.

Depois da leitura – e porque não convém esquecer que estamos em aula de Português e a (nossa) vida (infelizmente) não é só Nárnia, estivemos a conversar sobre verbos introdutores do diálogo. E, também neste aspecto, este livro é de uma riqueza extraordinária.

Respondeu, retorquiu, disse, perguntou, segredou, replicou, repetiu, prosseguiu, interrompeu, comentou, exclamou, confirmou, gritou, reclamou, concordou, adiantou, sugeriu, contrapôs, murmurou, tratamudeou, declarou, insistiu, explicou, acusou, bradou…

E todos estes só hoje, em dois capítulos.

(Permitam-me este comentário e por favor não me crucifiquem: em A Floresta, de Sophia de Mello Breyner, por exemplo, isto é bem diferente. No primeiro diálogo entre Isabel e o anão, quando se conhecem, o único verbo utilizado é o verbo dizer. E nós que passamos a vida a dizer aos alunos que têm de variar, que não podem usar sempre disse, disse, disse… Sim, eu sei que há uma (UMA) excepção neste diálogo a que me refiro.)

O que eu quero dizer é apenas isto: pensem no Daniel Penac. Pensem em Donalyn Miller. Pensem em Jim Trelease. Leiam. Invistam tempo das vossas aulas na leitura. Ensinem o gosto pela leitura através da leitura e não com teorias estéreis.

Ou deveria dizer, talvez: descubri vós, professores, o prazer da leitura, o prazer supremo de ler uma história, de rir e chorar com as personagens. De descobrir mundos novos.

Repito o que já disse muitas vezes: se os meus alunos (que não são meus amigos aqui no Facebook, mas que seguem, alguns deles, aquilo que torno público, como por exemplo esta Nota) saírem das minhas mãos com o bichinho da leitura, eu terei alcançado o meu objectivo mais querido, aquele que me faz sair da cama todos os dias de manhã.

E, apenas para terminar: eu não coloco aqui fotografias de crianças. Nem das minhas filhas, nem dos meus alunos. Mas a sério que hei-de fotografar a minha Elisa, a minha Telma e os outros todos. A imagem dos vossos olhos, muito abertos, que não pestanejam enquanto leio, é uma imagem que guardarei para sempre.

Na primeira pessoa

Hoje apetece-me. Ando há muito para fazer isto, e hoje é dia.

Este é o primeiro de uma série de pequenos segmentos da Grande Reportagem SIC que foi para o ar em Janeiro de 2012. Falava sobre o projecto de leitura que implementei com muito sucesso junto dos meus alunos do 2º ciclo – e que continuo a implementar, tendo alargado o público-alvo.

Neste primeiro vídeo, sob o olhar atento de um relógio que pára, cada aluno lê uma primeira frase de um conto diferente, dando uma ideia da variedade de temas sobre os quais lemos.

A primeira ida à biblioteca

Eis o resultado da nossa expedição à Biblioteca Municipal Raul Brandão:

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Aceitam-se apostas: quem escolheu o quê?

Pois… não dá muito que pensar…

Que fascínio! Tantos livros! E um desabafo que me encheu de baba: Aqui há mais livros do que em casa… É que é mesmo a primeira vez que lhes acontece entrar num sítio onde há mais livros do que cá em casa.

Numa nota mais prática: a peqena trouxe livros que a fascinaram e que, sobretudo no caso do Homem-aranha, já não deve ser possível encontrar na livraria.

A grande trouxe um das Tea Sisters que procurava há muito, mas que ninguém tinha para emprestare custa à volta de oito euros. Ao outro , tive-o na mão ontem, na Fnac. Estava em promoção, tinha desconto de 40%. O preço de capa era €8,80. Poupei um pedaço, digam lá.

O Ratinho das Amoras

 

O Ratinho vivia na sua casinha no campo.

Gostava muito dela porque era quente e aconchegada e tinha o tamanho ideal para um ratinho.

Mas, do que gostava mais nela, era o enorme arbusto de amoras que tinha no jardim, e que todos os anos dava uma colheita abundante de belos frutos maduros e sumarentos.

Certo Verão, as amoras do Ratinho ainda eram maiores e mais sumarentas do que habitualmente. Começou a colhê-las e já estava transpirado e cansado quando o Pardal apareceu.

— Que belas amoras! Posso comer algumas? — chilreou o Pardal.

— São todas minhas — respondeu o Ratinho. — Vai-te embora.

— Não precisas de falar assim — disse o passarinho voando para longe.

As patas do Ratinho já lhe doíam devido ao trabalho, quando reparou no Esquilo encostado ao portão.

— Dás-me algumas dessas amoras suculentas? — perguntou o Esquilo.

— Se tas der, ficarei com menos para mim — replicou o ratinho.

Assim o Esquilo foi embora de mãos a abanar.

Tinha o Ratinho parado para descansar das suas tarefas, quando a Coelha apareceu aos saltos.

— Essas amoras têm um aspecto apetitosíssimo — disse ela.

— E são — respondeu o Ratinho. — E vou comê-las todinhas.

— Então é mais que certo que vais ficar doente — respondeu a Coelha, virando-lhe as costas.

O sol estava muito quente e o Ratinho estava a ficar estafado.

Daí a pouco começou a cabecear de sono. Não reparara que havia alguém a espiá-lo.

Era o Senhor Raposo…

Quando viu que o Ratinho estava a dormir, esgueirou-se pelo portão e avançou devagarinho até conseguir chegar perto do cesto das amoras. Já se afastava quando CRAC ! Pisou um ramo seco.

O Ratinho acordou sobressaltado.

— Essas amoras são minhas — guinchou ele.

— Experimenta tirar-mas — riu-se o Senhor Raposo. — Vão ser-me bem úteis hoje ao chá.

O Ratinho não se surpreendeu por nenhum dos seus amigos o ter avisado de que o Raposo andava por fora naquele dia.

— Afinal — pensou — porque é que haviam de me ajudar, se eu não quis partilhar as minhas amoras com eles?

Então aconteceu uma coisa muito estranha. Uma bolota acertou na cabeça do Raposo!

 

PIMBA! E mais outra, PIMBA!

 

E outra e outra e mais outra. PIMBA! PIMBA! PIMBA!

O Raposo largou o cesto das amoras e fugiu a sete pés!

O Ratinho olhou para cima para ver de onde tinham vindo as bolotas. E quem acham vocês que ele viu no alto do velho carvalho?

Viu o Esquilo e o Pardal e a Coelha.

— Não podíamos deixar o senhor Raposo roubar as tuas amoras — disse o Esquilo.

— Apesar de não teres querido dividi-las connosco — acrescentou o Pardal.

O Ratinho sentiu-se muito envergonhado. Depois teve uma ideia…

Nessa tarde convidou todos os amigos para a festa das amoras. Trabalhou todo o dia a prepará-la.

Havia sumo de amora, compota de amora, geleia de amora, torta de amora e muitos outros doces de amora.

Os outros animais disseram que estava tudo delicioso.

— Afinal — disse Ratinho — talvez as amoras saibam melhor quando as partilhamos.

Matthew Grimsdale

O Ratinho das Amoras

Porto, Ambar, 2001

O Dia-da-Presença

Jorge acabou os trabalhos de casa e preparou a mochila para o dia seguinte. Tinha agora tempo para brincar. Gostava de brincar aos astronautas mas, sozinho, não tem graça nenhuma.

Vai ver então o que a irmã está a fazer: sentada no tapete, ela tenta enfiar numa linha anéis de plástico às cores. É quatro anos mais nova e não percebe nada daquele jogo. Nem consegue somar um mais um…

“Que irmã tão palerma”, pensa Jorge. “Porque é que a minha irmã não podia ser antes um irmão mais velho? Ao menos agora tinha um co-piloto.”

Furioso, Jorge bate com o pé no chão.

— Vês? Deixei cair os anéis todos por tua causa! — grita a irmã que começa a chorar.

— Bem podes pendurar o teu colar nas orelhas! — grita Jorge ao sair do quarto.

— Mãe — pergunta Jorge na cozinha — queres ser o meu co-piloto? Vou voar agora para Júpiter.

— Para que é que tens a tua irmã?

Isto também Jorge se pergunta às vezes… Será que o pai tem tempo? Está sentado na sala a arrumar os jornais.

— Pai! — chama Jorge. — Vens voar comigo para Júpiter com a minha nave espacial “Estrela Branca”? Preciso urgentemente de um co-piloto.

— Agora não, Jorge. Bem vês que estou a arrumar os meus jornais.

Jorge fica a pensar no que pode fazer. Ir a casa do seu amigo António, ao lado? Às vezes brinca com ele. Mas brincar com os pais é sempre melhor. É quase como fazer anos.

Amuado, Jorge volta para o quarto dos brinquedos. Senta-se no tapete ao lado da irmã para ter alguém que o escute.

— Sabes o que é que eu gostava de ter? Mais um dia na semana — diz ele. — Um dia da semana em que os pais fossem só para nós. Um oitavo dia na semana. E sabes como se chamaria? Hum… deixa cá ver…

Jorge pensa. Diz o nome dos dias da semana em voz alta. Começa na terça-feira porque hoje é terça:

— Terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira, sábado, domingo… já sei! — exclama. Vai chamar-se presença. E vem logo a seguir ao domingo. Basta meter o dia-da-‑presença no meio dos outros dias.

Jorge põe-se em sentido em frente da irmã e diz em tom cerimonioso:

— Eu, piloto da nave espacial “Estrela Branca”, decreto que haverá o Dia-da-Presença, o dia da semana em que todos os pais brincarão com os filhos àquilo que os filhos quiserem. A partir de hoje, a semana passa então a ser: domingo, dia-da-presença, segunda-feira! E depois continua como normalmente.

A irmã ri-se.

Jorge escreve este desejo para o Natal. E escreve também porque é que quer o dia-da-‑presença: nesse dia, os pais hão de brincar com ele. O dia inteiro!

Mas os pais riem e dizem:

— Só tu! És um sonhador! — O pai faz-lhe uma festa nos cabelos. Depois agarra-o ternamente e abana-o, como se pudesse sacudir-lhe os sonhos da cabeça.

Pelo Natal, Jorge recebeu um gravador. Não um dia-da-presença. O que o gravador tem de bom é que a irmã não tem autorização para mexer nele…

Evelyne Stein-Fischer

Jutta Modler (org.)

Frieden fängt zu Hause an

Munique, DTV, 1989
(Tradução e adaptação)

Gabriel García Márquez

No dia do seu 85º aniversário, o meu autor preferido de todos os tempos, nas suas próprias primeiras frases.

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.

Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas recordava-lhe sempre o destino dos amores contrariados.

José Palacios, o seu servidor mais antigo, encontrou-o a flutuar nas águas depurativas da banheira, nu e com os olhos abertos, e julgou que se tinha afogado.

Durante o fim-de-semana os urubus enfiaram-se pelas varandas da casa presidencial, desfizeram à bicada as redes de arame das janelas e remexeram com as asas o tempo estancado no interior e na madrugada de segunda-feira a cidade acordou do seu letargo de séculos com uma morna e mole brisa de morto grande e de apodrecida grandeza.

Esta é, incrédulos de todo o mundo, a história verídica da Mamã Grande, soberana absoluta do reino de Macondo, que viveu em situação de domínio durante noventa e dois anos e morreu com fama de santidade a uma terça-feira de Setembro passado, e a cujos funerais veio o Sumo Pontífice.

Um cão cinzento com uma mancha branca no focinho irrompeu pelas estreitas ruas do mercado no primeiro domingo de Dezembro, virou mesas de fritadas, espalhou estendais de índios e barracas de lotaria e, ao passar, mordeu quatro pessoas que se lhe atravessaram no caminho.

No ano dos meus noventa anos quis oferecer a mim mesmo ua noite de amor louco com uma adolescente virgem.

Com um esforço solene, o padre Ángel acordou.

O coronel destapou a caixa do café e verificou que não havia mais que uma colherinha.

De súbito, como se um remoinho se tivesse instalado no centro da aldeia, chegou a companhia bananeira, perseguida pela revoada.

Estava Eréndira a dar banho à avó quando começou o vento da sua desgraça.

No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5.30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo.

O voo 115 da Ladeco, procedente de Asunción (Paraguai), estava prestes a aterrar, com mais de uma hora de atraso, no aeroporto de Santiago do Chile.

A 22 de Fevereiro, anunciaram-nos que regressaríamos à Colômbia.

Como hoje é Domingo e parou de chover, penso que vou levar um ramo de rosas à minha campa.

Antes de entrar no automóvel, olhou por cima do ombro para ter a certeza de que ninguém a seguia.

Estava sentado no banco de madeira debaixo das folhagens amarelas do parque solitário, contemplando os cisnes poeirentos, com as duas mãos apoiadas no punho de prata da bengala, e a pensar na morte.

O comboio, um comboio que depois recordaria amarelo e poeirento e envolto numa fumarada sufocante, chegava todos os dias à aldeia às onze da manhã, depois de atravessar as vastas plantações de bananeiras.

A minha mãe pediu-me que a acompanhasse para vender a casa. Tinha chegado a Barranquilla naquela manhã, vinda da aldeia distante onde vivia a família, e não tinha a menor ideia de como me havia de encontrar.

A menina e o pássaro encantado

Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo.
Ele era um pássaro diferente de todos os demais: era encantado.
Os pássaros comuns, se a porta da gaiola ficar aberta, vão-se embora para nunca mais voltar. Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades… As suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava. Certa vez voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão…
— Menina, eu venho das montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco do encanto que vi, como presente para ti…
E, assim, ele começava a cantar as canções e as histórias daquele mundo que a menina nunca vira. Até que ela adormecia, e sonhava que voava nas asas do pássaro.
Outra vez voltou vermelho como o fogo, penacho dourado na cabeça.
— Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga. As minhas penas ficaram como aquele sol, e eu trago as canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes.
E de novo começavam as histórias. A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina, e por isto voltava sempre.
Mas chegava a hora da tristeza.
— Tenho de ir — dizia.
— Por favor, não vás. Fico tão triste. Terei saudades. E vou chorar…— E a menina fazia beicinho…
— Eu também terei saudades — dizia o pássaro. — Eu também vou chorar. Mas vou contar-te um segredo: as plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios… E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera do regresso, que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudade. Eu deixarei de ser um pássaro encantado. E tu deixarás de me amar.
Assim, ele partiu. A menina, sozinha, chorava à noite de tristeza, imaginando se o pássaro voltaria. E foi numa dessas noites que ela teve uma ideia malvada: “Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá. Será meu para sempre. Não mais terei saudades. E ficarei feliz…”
Com estes pensamentos, comprou uma linda gaiola, de prata, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera. Ele chegou finalmente, maravilhoso nas suas novas cores, com histórias diferentes para contar. Cansado da viagem, adormeceu. Foi então que a menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola, para que ele nunca mais a abandonasse. E adormeceu feliz.
Acordou de madrugada, com um gemido do pássaro…
— Ah! menina… O que é que fizeste? Quebrou-se o encanto. As minhas penas ficarão feias e eu esquecer-me-ei das histórias… Sem a saudade, o amor ir-se-á embora…
A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas não foi isto que aconteceu. O tempo ia passando, e o pássaro ficando diferente. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio: deixou de cantar.
Também a menina se entristeceu. Não, aquele não era o pássaro que ela amava. E de noite ela chorava, pensando naquilo que havia feito ao seu amigo…
Até que não aguentou mais.
Abriu a porta da gaiola.
— Podes ir, pássaro. Volta quando quiseres…
— Obrigado, menina. Tenho de partir. E preciso de partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro de nós. Sempre que ficares com saudade, eu ficarei mais bonito. Sempre que eu ficar com saudade, tu ficarás mais bonita. E enfeitar-te-ás, para me esperar…
E partiu. Voou que voou, para lugares distantes. A menina contava os dias, e a cada dia que passava a saudade crescia.
— Que bom — pensava ela — o meu pássaro está a ficar encantado de novo…
E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos, e penteava os cabelos e colocava uma flor na jarra.
— Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje…
Sem que ela se apercebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado, como o pássaro. Porque ele deveria estar a voar de qualquer lado e de qualquer lado haveria de voltar. Ah!
Mundo maravilhoso, que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama…
E foi assim que ela, cada noite, ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento: “Quem sabe se ele voltará amanhã….”
E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro.

* * *

Para o adulto que for ler esta história para uma criança:
Esta é uma história sobre a separação: quando duas pessoas que se amam têm de dizer adeus…
Depois do adeus, fica aquele vazio imenso: a saudade.
Tudo se enche com a presença de uma ausência.
Ah! Como seria bom se não houvesse despedidas…
Alguns chegam a pensar em trancar em gaiolas aqueles a quem amam. Para que sejam deles, para sempre… Para que não haja mais partidas…
Poucos sabem, entretanto, que é a saudade que torna encantadas as pessoas. A saudade faz crescer o desejo. E quando o desejo cresce, preparam-se os abraços.
Esta história, eu não a inventei.
Fiquei triste, vendo a tristeza de uma criança que chorava uma despedida… E a história simplesmente apareceu dentro de mim, quase pronta.
Para quê uma história? Quem não compreende pensa que é para divertir. Mas não é isso.
É que elas têm o poder de transfigurar o quotidiano.
Elas chamam as angústias pelos seus nomes e dizem o medo em canções. Com isto, angústias e medos ficam mais mansos.
Claro que são para crianças.
Especialmente aquelas que moram dentro de nós, e têm medo da solidão…

As mais belas histórias de Rubem Alves
Lisboa, Edições Asa, 2003