Quem ousa pedir tecto?

Deixo-vos um conto escrito por uma grande amiga,

que me dá a honra de o publicar aqui, em primeira mão.

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Sobressaltada, estremunhou-se naquela hora. Um despertador, indiferente à idade dela, acordou-a de forma deselegante, atendendo a que já se conheciam há mais anos do que ela recordava. Bem tentou levantar-se de um gesto, mas o reumatismo não lho permitia; afinal, continuava a esquecer-se que já ultrapassara os 80, o que lhe dificultava a conciliação entre o corpo e a mente. Olhou em redor, ainda deitada; acendeu a luz e irritou-se por ter de se levantar àquela hora. Eram 3 da manhã e já se sentia atrasada. Uma chuva miudinha, que caía lá fora, convidava-a a aconchegar-se mais nos cobertores, porém, em breve, se não se levantasse, poderia não ter mais onde repousar a extenuantemente longa e dura vida de trabalho que tivera.

“Que desumanidade, a daquele senhorio, o Sr. Almeida!” Eram praticamente da mesma idade, mas, para ele, a vida não fora madrasta. Herdara propriedades e casas dos antepassados, nunca conhecera dificuldades e, invariavelmente, a cada dia 8, batia-lhe à porta, reinvindicando os 60 euros da renda de uma casa a necessitar de obras. Era aviltante! “Que a casa dava para o rio, que a vista era deslumbrante, que a zona era histórica, que… que…” justificava ele.

Dona Adosinda auferia uma pensão de 348 euros; deste faustoso rendimento, depois de pagar a renda, tinha ainda de ver-se a contas com a luz, a água, a alimentação e os remédios. O que lhe valia era a senhora da farmácia permitir-lhe fiado. Era um desespero! Não lhe fazia género lamentar-se a este e aquele, mas, na farmácia, não tinha outra alternativa.

Dias antes, recebera do senhor Almeida uma carta registada (para dar mais imponência ao assunto) contendo um aviso: a renda da casa ia aumentar. “Como podia ser isso? Ia passar a pagar 260 euros??? Deve haver algum engano!” Mas não. As más notícias nunca são engano. Um aperto doloroso no peito fê-la transbordar em lágrimas de cólera. Desabafou com a vizinha: “Sempre vivi nesta casa! Conheço o ranger de cada tábua, o chiar de cada dobradiça. Que me estão a fazer? Como vou pagar uma renda destas?” As palavras brotavam-lhe em torrente atordoada com a carta estrangulada entre os dedos, provocando o grito das articulações. ”Maldito reumático!” Contudo, eram horas de agir.

Vira na TV, com imagem tremida, que não era a única. Multiplicavam-se os casos iguais aos dela por todo o país. Sentiu-se constrangedoramente acompanhada. “Por que razão estavam a atormentar os velhos depois de terem tentado tirar-lhes a dignidade?” Adosinda bebia com atenção as notícias e soube que também teria o mesmo destino de tantos outros: ir de madrugada para a bicha das finanças e implorar um papel que provasse o seu magríssimo rendimento mensal. “Meu Deus, que desatino! Que maldade! Isto é falta de respeito! Onde já se viu?” Acabou por se conformar, relutantemente, com a ideia: “Vou esfregar na cara do Almeida o malfadado papel. Ele não vai poder desalojar-me e terá que se contentar com os 60 euros.”

A chuva insistia em assombrar o dia, mas entretanto, perdida nos pensamentos, Adosinda já desperdiçara sete valiosos minutos, que lhe podiam garantir um punhado de pessoas à frente. Desenrolou-se dos cobertores, afagou o gato que continuava a acarinhar-lhe os dias, lavou-se tão rápido quanto a idade lho permitia, mastigou um naco de pão da véspera e engoliu meia chávena de chá frio. Vestiu-se e saiu. Ainda tinha uma boa meia hora de caminho a pé (os transportes públicos eram-lhe um gasto supérfluo, um luxo que não podia permitir-se). Sentia-se amarga com a vida, sempre fizera tudo certinho, nunca se metera em alhadas e a recompensa era ser cidadã de um país que apostava em atazanar os velhos desprotegidos.

Chegou à repartição de finanças. Desconfortável. Olhou para o relógio: passavam quinze minutos das 4 da manhã. Faltavam 5 horas para abrir e já tinha nove pessoas à sua frente. Sentou-se vagarosamente num degrau coberto, de acesso ao prédio, encostou a cabeça de um corpo cansado e dormitou. O fulano que ganhara o lugar a seguir ao seu, trazia nas mãos um jornal. “Já saíram os jornais?” Olhou o relógio. Nem dera fé de o tempo ter passado. Já eram 7 horas. Só tinha de esperar mais duas. Olhou, de relance, o jornal do desconhecido que se lhe seguira; então, uma gargalhada desautorizada saiu-lhe da garganta: “O que estava ela a ler? Que os presos preferiam a cadeia à liberdade, por causa da crise? Ao que nós chegámos! Abdicarem da liberdade? Que patamar sobra para descer?” Adosinda inquietou-se nestas reflexões. “Será que alguém, daqueles que ali estavam, ponderariam uma solução daquelas como emergência? Era uma forma atrabiliária de não pagar renda aos senhores Almeidas deste país! Será que é preciso praticar delitos para se ter tecto? E a independência, onde fica? Não. Não. As finanças iam resolver-lhe o problema…”

Abriram as portas naquele momento. A senha número 10 também lhe abriria a continuidade de morar na casa de sempre, sua confidente e protectora.

Entrou.

Lídia Peixoto

28 de Julho de 2013

Parecer sobre a Petição pela desvinculação de Portugal ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990

A pedido da Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura, expliquei, e está disponível aqui, por que subscrevo a Petição:

Guimarães, 30 de Junho de 2013

Excelentíssimo Senhor

Deputado José Ribeiro e Castro

Presidente da Comissão de Educação, Ciência e Cultura,

Assunto: Parecer sobre a Petição nº 259/XII/2ª: “Pela Desvinculação de Portugal ao ‘Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990’”

Em resposta ao solicitado por V. Exª através do V/ ofício nº 263/8ª – CECC/2012, venho por este meio pronunciar-me em relação à aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (AO90) na qualidade de cidadã, de professora de Português, de encarregada de educação e de presidente da Associação de Pais da Escola EB 1/JI de S. Roque, Guimarães.

“A peculiar tarefa da Economia consiste em demonstrar aos homens

quão pouco conhecem daquilo que imaginam poder controlar.”

F. Hayek

Esta afirmação de Hayek, galardoado com o Prémio Nobel da Economia em 1974, aplica-se não apenas à área específica a que se refere, mas a todas as áreas em que existe acção humana.

A evolução natural da língua, por oposição à evolução por decreto, passa pelo contributo de cada indivíduo. A língua resulta da interacção dos indivíduos entre si. A sua evolução é uma evidência; no entanto, ela consiste num processo natural, contínuo, e não pode resultar de uma imposição política centralizada. A linguística resulta da observação de como os falantes de determinada língua a utilizam.

Tal como na Economia, em que tentativas de intervenção, ainda que bem-intencionadas, conduzem a efeitos perniciosos não previstos, também a manipulação exógena da língua conduzirá a efeitos não desejados que já se observam na sociedade em geral, numa fase ainda muito inicial da aplicação do AO90. Verifico situações desta natureza em sala de aula: alunos já portadores de dificuldades de leitura, que não conseguem, em todas as situações, socorrer-se do contexto para decifrar de que palavra se trata, que hesitam muito mais ainda na leitura de palavras que passam, artificialmente, a ser homófonas, como no caso de recepção/*receção e recessão. Na tentativa de ler segundo a regra, que foi alterada artificialmente, o leitor é induzido em erro.

Desta supressão injustificada das consoantes ditas mudas resultará inevitavelmente o fechamento das vogais que as antecedem. Estes casos já se verificam. De facto, se ouvirmos atentamente um serviço noticioso na televisão, em qualquer canal, verificaremos que os próprios jornalistas começam a fechar vogais que são abertas – pela ausência da consoante que indica a correcta pronúncia da palavra em questão. Esta situação é particularmente grave na medida em que os apresentadores de serviços noticiosos são, por inerência, transmissores da língua, sendo, portanto, sua obrigação utilizá-la exemplarmente.

Se estas situações já sucedem tão pouco tempo após a implementação do AO90, em que todas as pessoas aprenderam a escrever segundo as regras (ainda) em vigor, podemos facilmente imaginar que, dentro de alguns anos, a esmagadora maioria dos portugueses pronunciará como fechadas vogais que devem ser abertas. Veja-se o exemplo de oficial, em que a ausência do f dito mudo conduziu a que todos fechassem a pronúncia do o inicial. Dentro de poucos anos, com a aplicação das regras definidas pelo AO90 no que diz respeito à supressão das consoantes ditas mudas, assistiremos, inevitavelmente, a inúmeros casos desta natureza.

A presença destas consoantes, ditas mudas, pode, aliás ser um meio de aprendizagem facilitador para os que estudam Português como língua estrangeira, precisamente por indicarem como devem pronunciar-se as vogais, aspecto que constitui a maior dificuldade para os falantes não nativos.

Em alguns países, como Angola e Moçambique, realizaram-se estudos sobre o impacto económico da aplicação do AO90. Tais estudos, se foram realizados em Portugal, não são do conhecimento público. Na qualidade de professora, de Encarregada de Educação e de dirigente de uma Associação de Pais, não posso deixar de me preocupar muito com as bibliotecas escolares. É do domínio público que, nos últimos dez anos, foram investidas somas avultadas nas bibliotecas escolares em todo o país. Todos esses livros terão, a partir da implementação do AO90, um único fim possível: o lixo. Todos os livros existentes nas bibliotecas escolares deverão estar escritos de acordo com a ortografia que as crianças estão a aprender, sob pena de dificultarmos a sua aprendizagem da língua materna – que se reveste já de tão grandes dificuldades para todos: falantes nativos e não nativos. Será necessário um esforço financeiro gigantesco, e injustificado, para repor as bibliotecas em todas as escolas, em todo o país. Este aspecto tem de ser do agrado das editoras, que são o grupo de pressão que mais tem a ganhar com a aplicação do AO90. Quanto tempo teremos, pais e alunos, de esperar até que as novas bibliotecas estejam prontas? Demorará certamente muitos anos, porque estamos a falar de muitos milhares de volumes em cada escola, em todas as escolas do país. E este é um custo que terá de ser assegurado exclusivamente pelo Estado, em virtude de ser o Estado o único responsável pela criação injustificada da necessidade de substituir todos os livros. Esta questão seria sempre pertinente, mas reveste-se de uma importância ainda maior dada a conjuntura económica que vivemos.

O argumento de que a nova ortografia facilitará a aprendizagem da escrita e reduzirá a ocorrência de eros ortográficos é falso. A tentativa de simplificar as regras não se traduz em menos erros ortográficos. A sustentação de que tal se observará é tão válida como tentar solucionar um problema de sobreaquecimento de uma máquina retirando-lhe o termóstato…

Por outro lado, os erros ortográficos com que me deparo no que escrevem os meus alunos, que frequentam o segundo ciclo de escolaridade, são tão graves e de tão variada natureza, que nenhum “acordo” tem o poder de remediar a situação. Como exemplos, posso referir que escrevem *ção, referindo-se ao seu animal de estimação, e grafam a expressão de repente como uma só palavra: *derrepente. Estes são apenas dois exemplos de que há muito a fazer pela literacia dos portugueses. Não devemos centrar esforços em promover artificialmente uma nova forma, errada, de escrever, mais ainda quando essa mesma reforma é contrária não só à maioria dos pareceres técnicos, de linguistas, mas conhece o repúdio de dois países que supostamente deveriam aprová-la e um outro país adia sucessivamente a sua aplicação. Do que Portugal precisa é de um investimento muito grande – não apenas de dinheiro, mas sobretudo de trabalho – na promoção da leitura, que é o único meio de promoção efectiva da literacia.

A aceitação de diferentes grafias como válidas é a negação do próprio conceito de norma ortográfica e constitui algo insustentável em contexto de sala de aula. Por outro lado, a consagração de uma forma ortográfica pelo uso leva-me a perguntar se poderemos aceitar *cabo como correcto, enquanto primeira pessoa do singular do verbo caber. Está consagrado pelo uso…

Aproximar a grafia da pronúncia é algo verdadeiramente perigoso. Veja-se quantas pessoas pronunciam *apois (depois). Como explicar, então, que se trata de um erro ortográfico, se podem contrapor com uma “regra” que prevê que se escreva conforme se fala? Mesmo sabendo que esta regra não é de aplicação universal, a facultatividade e a coexistência de duplas grafias não são compatíveis com um ensino de qualidade.

Devemos também considerar que, em virtude de não existir ainda um Vocabulário Ortográfico Comum (VOC), apontado no próprio texto do AO90 como condição essencial para a sua aplicação, vivemos nas escolas uma situação muito complicada, derivada das duas leituras, em alguns aspectos importantes divergentes, que os dois grandes grupos editoriais que dominam o mercado dos livros escolares fazem do texto do AO90. De facto, basta uma comparação entre um dicionário do grupo Porto Editora e um outro de uma das editoras do grupo Leya para compreendermos que existem interpretações diferentes de alguns aspectos do AO90. Daqui resultam grafias diferentes da mesma palavra nos manuais escolares, consoante sejam publicados por editoras pertencentes a um ou ao outro grupo. Os estudantes podem deparar-se com a mesma palavra grafada de maneira diferente em dois manuais escolares ou outros materiais de apoio ao estudo. Isto pode acontecer nos manuais adoptados para as diferentes disciplinas num mesmo ano lectivo, mas também nos manuais adoptados na mesma disciplina em anos diferentes… ou, no caso dos alunos mais aplicados, numa mesma sessão de estudo em que recorrem a mais do que um manual. Daqui podem surgir situações embaraçosas para os professores: na mesma turma, em anos lectivos diferentes, utilizando manuais de diferentes editoras, surgem palavas grafadas de uma e de outra maneira. O que fazer? O que dizer aos alunos? Recorrer a que materiais de apoio para tirar dúvidas? “Porque sim” é uma resposta que não cabe numa sala de aula. Quando um aluno questiona a ortografia de determinada palavra, o professor socorre-se do étimo para esclarecer. “Porque sim” passará a ser a única resposta possível a muitas destas perguntas. O que é inaceitável.

A confusão, a que alguns chamam “caos ortográfico” está patente até no Ofício que me dirigiu V/ Exª, a que esta carta responde: grafam junho, Agosto e julho…

O Inglês é, em todo o mundo, a língua mais estudada como língua estrangeira. A maior parte dos estudantes de Inglês como segunda língua aprende a sua variante Britânica. No entanto, a variante Americana é aquela com que nos deparamos mais vezes no cinema, na música, na literatura científica. As diferenças entre estas duas variantes, que se observam na grafia, na pronúncia e no próprio léxico, não tiram o sono à Rainha de Inglaterra nem ao Presidente dos Estados Unidos, e também não afastam milhões de pessoas, em todo o mundo, que utilizam o Inglês como segunda língua. O que acontece, então? As editoras de dicionários, em ambos os lados do Atlântico, assinalam as diferenças de grafia, pronúncia e/ou significado, quando aplicáveis, e não pensam mais nisso.

Por que não podem as editoras portuguesas e brasileiras fazer o mesmo?

E por que não podem os Governos de ambos os países abster-se de regular algo que não é regulável por decreto?

E por que insistem em fazê-lo, sabendo que há um conjunto muito grande de efeitos indesejados, sobretudo no que diz respeito a mudanças na pronúncia de muitas palavras, que se observarão inevitavelmente?

A aplicação destas novas regras ortográficas não é de qualquer utilidade, visto que não se alcança sequer a tal unificação ortográfica com o Português do Brasil, já que são múltiplos os casos de duplas grafias que o AO90 prevê. Tal unificação seria sempre, de resto, inalcançável, porquanto o oceano que nos aparta é ilustrativo da distância cultural que separa os dois países.

A iniciativa dos autores da Petição em epígrafe reveste-se, portanto, de interesse nacional, na medida em que visa defender a Língua Portuguesa como património linguístico e cultural enriquecido pelas diferenças que lhe impõem os falantes dos diversos países que a utilizam, e pertencente a todos nós – utilizadores do Português de todas as partes do mundo, de hoje e de sempre.

Com os melhores cumprimentos,

Eduarda Abreu

Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses e Ingleses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto;

Professora de Português e Inglês no segundo ciclo do Ensino Básico, a leccionar na Escola EB 2/3 de Paredes;

Mãe de uma aluna do segundo ano de escolaridade e de uma aluna em idade pré-escolar;

Presidente do Conselho Executivo da Associação de Pais da Escola EB 1/JI de S. Roque, Guimarães;

Autora do projecto de leitura para-escolar “Conto Contigo”, tema da Grande Reportagem SIC “Acrescenta um Conto”, 2012: https://www.dropbox.com/lightbox/home/Eduarda%20%C2%AB-%C2%BB%20Rui%20Faria%20(1)

http://sicnoticias.sapo.pt/programas/reportagemsic/2012/01/11/acrescenta-um-conto