A manta das histórias

A pequena aldeia onde Babba Zarrah vivia ficava situada nas montanhas cobertas de neve. Babba Zarrah tinha uma manta das histórias, na qual as crianças adoravam sentar-se a ouvi-la.

Certo dia, enquanto contava uma história, a velhinha reparou que o sapato de Nicolai tinha um buraco. Depois de as crianças terem ido embora, Babba Zarrah decidiu tricotar-lhe umas meias bem quentinhas. Mas, como tinha caído imensa neve naquele Inverno, ninguém aparecera na aldeia a entregar lã. Como poderia ela tricotar meias sem lã?

— Todas as perguntas têm uma resposta — disse a bondosa senhora. — Só tenho de a encontrar.

Deitou chá doce num copo, porque esta bebida ajudava-a a pensar. Bastaram-lhe três golinhos para saber o que havia de fazer.

— Vou desfiar um pouco da manta das histórias e usar a lã para tricotar as meias de Nicolai! — exclamou.

Quando a noite ia alta e já todos dormiam, Babba Zarrah percorreu os caminhos de neve e deixou as meias à porta do menino.

Pouco tempo depois, o carteiro encontrou um cachecol enrolado no seu saco, mesmo antes de começar a distribuição do correio.

— Sabem quem o fez? — perguntou a todos que encontrou.

Mas ninguém sabia.

O professor ficou admirado ao ver um par de luvas quentes em cima da pilha de troncos que ia colocar no fogão da escola.

Quanto à Sra. Ivanov, afastou os corvos da corda de secar a roupa com o avental que descobriu junto à bomba da água.

E não tardou muito até que a dona da mercearia usasse um xaile novo em vez do velho que tinha, já comido pelas traças.

As crianças tinham de sentar-se cada vez mais juntinhas, sempre que vinham ouvir uma história.

Cada dia que passava, os aldeões ficavam mais curiosos.

A bebé Olga recebeu um misterioso e fofinho cobertor, enquanto o talhante exibia um moderno gorro de malha a cobrir a careca brilhante.

E as crianças apertavam-se cada vez mais na, agora, pequena manta das histórias.

Quando o gato do alfaiate apareceu, ronronante e importante, dentro de uma confortável capinha de lã, deixou de haver manta.

Os aldeões pediram ao presidente da junta para os ajudar a resolver o mistério.

— Vocês sabem o que a Babba Zarrah diz sempre — respondeu ele. — Todas as perguntas têm uma resposta.

Quando as crianças viram as meias, o cachecol, as luvas, o avental, o xaile, o gorro, a manta da bebé, e a capinha do gato, exclamaram em uníssono:

— Parece a velha manta das histórias da Babba Zarrah!

— Mas ela já não a tem! — disse Nicolai.

— Ora aí está! A Babba Zarrah usou a manta para fazer tudo isto! É a nossa vez de lhe fazermos uma surpresa.

Então, enquanto Babba Zarrah dormia, alguns novelos de lã, proveniente dos cobertores de cada casa, foram deixados na soleira da sua porta.

A velhinha ficou admirada quando abriu a porta na manhã seguinte. Nunca tinha visto tanta lã, e tão colorida. Em cima do montinho, havia um letreiro que dizia:

Para a sua nova manta

Quando as crianças regressaram a casa de Babba Zarrah para ouvir uma história, sentaram-se numa manta nova e colorida, e ouviram um conto sobre uma aldeia onde todos partilhavam o que tinham.

Enquanto se despedia das crianças, Babba Zarrah reparou num buraco na camisola de Alexandra. Queria tricotar-lhe uma surpresa, mas ainda havia neve nas colinas e a aldeia não tinha lã.

A velhinha sabia que todas as perguntas têm uma resposta. Então, olhou para a sua nova manta das histórias e sorriu.

Ferida Wolff; Harriet May Savitz
The Story Blanket
Atlanta, Peachtree Publishers, 2008
(Tradução e adaptação)

Crucifiquem-me

Como professora de Língua Portuguesa, quero que os meus alunos aprendam tudo sobre o texto narrativo, o texto poético e dramático. Quero que dominem a morfologia e a sintaxe. Que se exprimam oralmente e por escrito com crescente mestria.
Mas se eu não conseguir nada disto e se os meus alunos saírem da minha sala a gostar de ler, aí sim. Terei atingido o meu objectivo mais querido, aquele que me tira da cama todos os dias.
É por isso que lhes leio tanto, quase todas as aulas. E eles já me apanharam o pulso. Sabem que há sempre novidades, e sabem que eu estou sempre mortinha por lhes ler mais um conto.

Subir pelo lado que desce

Viver é subir uma escada rolante pelo lado que desce.

Ouvindo esta frase, imaginei qualquer pessoa nessa acrobacia que as crianças fazem ou tentam fazer: escalar aqueles degraus que nos puxam inexoravelmente para baixo. Perigo, loucura, inocência, ou uma boa metáfora do que fazemos diariamente?
Poucas vezes me deram um símbolo tão adequado para a vida, sobretudo naqueles períodos difíceis em que até pensar em sair da cama dá vontade de desistir. Tudo o que quereríamos era taparmos a cabeça e dormirmos, sem pensarmos em nada, fingindo que não estamos nem aí…
Porque Tanatos, isto é, a voz do poço e da morte, nos convoca a cada minuto para que, enfim, nos entreguemos e acomodemos. Só que acomodar-se é abrir a porta a tudo aquilo que nos faz cúmplices do negativo. Descansaremos, sim, mas tornando-nos filhos do tédio e amantes da pusilanimidade, personagens do teatro daqueles que constantemente desperdiçam os seus próprios talentos e dificultam a vida dos outros.
E o desperdício da nossa vida, talentos e oportunidades é o único débito que no final não se poderá saldar: estaremos no arquivo-morto.
Não que não tenhamos vontade ou motivos para desistir: corrupção, violência, drogas, doença, problemas no emprego, dramas na família, buracos na alma, solidão no casamento a que também nos acomodamos… tudo isso nos sufoca. Sobretudo, se pertencermos ao grupo cujo lema é: Pensar, nem pensar… e a vida que se lixe.
A escada rolante chama-nos para o fundo: não dou mais um passo, não luto, não me sacrifico mais. Para quê mudar, se a maior parte das pessoas nem pensa nisso e vive da mesma maneira, e da mesma maneira vai morrer?
Não vive (nem morrerá) da mesma maneira. Porque só nessa batalha consigo mesmo, percebendo engodos e superando barreiras, podemos também saborear a vida. Que até nos surpreende quando não se esperava, oferecendo-nos novos caminhos e novos desafios.
Mesmo que pareça quase uma condenação, a ideia de que viver é subir uma escada rolante pelo lado que desce é que nos permite sentir que afinal não somos assim tão insignificantes e tão incapazes.
Então, vamos à escada rolante: aqui e ali até conseguimos saltar degraus de dois em dois, como quando éramos crianças e muito mais livres, mais ousados e mais interessantes.
E porque não? Na pior das hipóteses, caímos, magoamo-nos por dentro e por fora, e podemos ainda uma vez… recomeçar.

Lya Luft
Pensar é transgredir
Lisboa, Presença, 2005