Memorial do racismo

Quando, em Junho, Nelson Mandela foi internado na sequência de uma infecção pulmonar, as televisões, naturalmente, não falavam de outra coisa. Todos os noticiários abriam e fechavam com notícias sobre o seu estado de saúde. Ou melhor: com a falta de notícias sobre a evolução da saúde de Mandela. Nessa altura, as minhas filhas, de sete e quatro anos, quiseram saber que pessoa era aquela que “monopolizava” noticiários inteiros. Expliquei-lhes quem foi, o que fez, onde, porquê… e elas perceberam a importância histórica desta figura. Ontem, quando ouvi que Mandela tinha morrido, percebi imediatamente que a minha aula de Português desta manhã teria de ser sobre ele. E tinha de ser esta manhã, porque sabemos que, ao longo de todo o fim de semana, não se falará de outra coisa e os meus alunos, de quinto ano, têm de saber ouvir as notícias. Nas pesquisas que efectuei sobre como falar de Mandela às crianças encontrei este texto de Leo Salvador, que descreve uma visita ao Museu do Apartheid, em Joanesburgo. Vale a pena ler.

apartheid

Na África do Sul, o tempo mede-se em “antes de 1989” e “depois de 1989”. Este foi o ano em que acabou o “apartheid”, o regime de segregação racial imposto pelos brancos. As marcas deste regime estão patentes no Museu do Apartheid, em Joanesburgo.

Quinze minutos depois de sair do aeroporto internacional de Joanesburgo, a maior cidade da África do Sul, chego ao Museu do Apartheid. Neste edifício retratam-se os 78 anos de segregação racial que feriram a convivência entre Sul-Africanos de 1911 a 1989. E escreve-se a história dos últimos 17 anos, nos quais se multiplicam os esforços por construir um futuro cheio de esperança e de paz.

Memorial

O edifício do museu tem um desenho moderno e atraente. Situa-se num espaço que já foi um complexo industrial de uma empresa mineira, conhecido como Gold Reef (Recife de Ouro). Os vestígios das minas de ouro pintam as colinas de amarelo. Mas, com o passar do tempo, algumas já se cobriram de verde. Outrora as minas surgiam como fungos. Actualmente estão esgotadas.

Enquanto me aproximo do museu ouço gritos que vêm de um parque nas vizinhanças. Lembram-me os clamores das manifestações escolares nos anos da discriminação racial. Os gritos que escuto agora também são de alunos, expressão de alegria e diversão.

O edifício ocupa 6000 metros quadrados, o equivalente a dois campos de futebol. Nele destacam-se sete lápides com 12 metros de altura. Lembram os sete pilares da nova constituição do país: liberdade, respeito, responsabilidade, diversidade, igualdade, reconciliação e democracia. Outros elementos, como o muro alto de pedra e a entrada, remetem-me para imagens de prisões. Na área exterior há fotografias que retratam os povos e culturas que conviviam antes do regime racista, a época das classificações das raças e os anos de sofrimento e terrores. Fazem memória da segregação e das detenções.

Pago a entrada. Recebo um bilhete que me classifica aleatoriamente como não branco e, de acordo com esta classificação, devo entrar pela porta que diz, em letras grandes, no dialecto afrikaans e em inglês «Nie-Blankes; Non-Whites». Outros entram pela que diz «Blankes; Whites». Ainda que a fingir, experimento a impotência de ser obrigado a entrar pela porta dos não brancos.

As duas portas dão para corredores paralelos, separados por uma parede de pequenas celas de arame, e, durante algum tempo, os grupos mantêm-se divididos. Nas celas pequenas, que parecem gaiolas, expõem-se passes de «não brancos» e de «negros». No centro descrevem-se as classificações raciais que o sistema do «apartheid» praticou: mestiços, asiáticos, malaios, chineses… E pormenoriza-se a divisão entre africanos, conforme as tribos: bantus, sotho, zulus, xhosa, tswana, ndebele… No final deste corredor, os que recebemos a classificação de não brancos deparamo-nos com uma fotografia à escala real de quatro homens brancos, sentados numa grande secretária. Recria a «Race Classification Board» (Comissão de Classificação Racial) que catalogava as pessoas segundo a cor da pele.

Entrar na história

Visito 22 espaços. Faço uma viagem tão emocionante quanto dramática pela história escrita por um sistema fundado na discriminação racial. Sinto-me regressar aos anos 70 do séc. XX. Imagino-me a esquivar-me às granadas de gás lacrimogéneo e às balas da polícia; a marchar juntamente com a multidão de estudantes, alguns com brinquedos na mão; a arrastar o corpo ferido de um amigo, para o proteger da polícia.

As fotografias, os vídeos, os textos e os objectos mostram-me diferentes episódios de segregação racial e de repressão. As televisões passam cenas de acontecimentos horríveis que aconteceram em todo o mundo no mesmo dia de 1976 em que o menino Héctor Peterson foi morto durante uma manifestação de estudantes em Soweto. Ou transmitem o discurso de Henrik Verwoerd, tido como o arquitecto do «apartheid». Ele explica a uma multidão que a África do Sul só será feliz se as raças viverem separadas.

Entro num veículo de assalto da polícia sul-africana que tantas vezes ocupou a primeira linha nos ataques aos manifestantes. Assisto a filmes captados desde o interior do blindado, quando circulava pelos bairros onde «depositaram» à força os negros, os «township».

Entro numa sala onde pendem 121 forcas de corda. Lembram todos os condenados à morte durante o «apartheid».

Termino a visita num espaço sereno e reconfortante: a sala da memória. Aqui está exposta a nova Constituição da África do Sul. E cada visitante pode contribuir criativamente para prolongar a exposição. Se tem gosto e jeito pode fazer um desenho ou uma escultura. Também pode optar por deixar as suas impressões num estúdio de gravação áudio, de modo que outros as possam ouvir.

Lição final

Saio do Museu do Apartheid com a ideia de que nele se confrontam tragédia e heroísmo, tirania e liberdade, caos e paz. Vejo-o como um farol de esperança, que mostra ao mundo como a África do Sul aprendeu a renascer; e como um testemunho do trabalho desenvolvido para construir um futuro onde todos convivam sem quaisquer distinções.

“Apartheid”

A era do «apartheid» na África do Sul começou em 1911, quando a minoria branca, composta por descendentes de britânicos e de holandeses, promulgou uma série de leis que afirmavam a sua superioridade e domínio sobre a população negra.

O «apartheid» negou os direitos dos negros: de ter uma terra, de participar na política e de gozar de igualdade de tratamento na educação, no trabalho, nos transportes públicos, no acesso à cultura e na prática da religião. A minoria branca obrigou os negros a viverem em bairros separados dos deles. E declarou ilegais os casamentos entre pessoas de raças diferentes.

A oposição ao «apartheid» surgiu logo em 1912, com a criação do Congresso Nacional Africano (ANC, em inglês). O seu líder, Nelson Mandela, foi condenado à prisão perpétua em 1964. Mas, entretanto, muitos países pressionaram o Governo sul-africano para pôr fim à política de segregação racial. O fim do «apartheid» dá-se em 1989. Um ano depois, Mandela é libertado.

Em 1993, o presidente sul-africano Frederik De Klerk e Nelson Mandela ganham o Prémio Nobel da Paz. No ano seguinte, Mandela conquista a presidência do país e forma o primeiro governo multirracial.

Leo Salvador

e então… lemos.

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Este ano tenho um quinto ano de Português… muito barulhento. E ainda por cima, como sou directora de turma deles, raro é o da em que não tenho uma queixa. Portam-se mal, pronto. Falam muito. Fazem barulho.

Podem, portanto, imaginar o meu espanto ao verificar que nas minhas aulas, cada vez mais se… ouvem as moscas. Não se ouvem moscas, que não as há, mas ouvir-se-iam, se as houvesse.

Hoje, por exemplo. Entrámos às oito e meia e, nada mais sentarem-se, comecei a ler.

Estamos a ler As Crónicas de Nárnia, comecei, naturalmente, pelo primeiro volume, O Sobrinho do Mágico, e a reacção deles está a ser… um sonho.

Não pare, professora!

Continue, por favor!

Só a primeira página do capítulo…

Só mais um bocadinho…

Não temos um livro para cada aluno, nem sequer um livro em cada mesa, que a biblioteca da escola não chega a tanto. Eu leio, eles ouvem. E ouvem deliciados.

Este livro é riquíssimo. Não apenas pelo trabalho de estímlo à imaginação, mas também pela linguagem. Isto é Literatura, assim, com letra maiúscula, no mais puro sentido do termo. Não é de admirar que faça as delícias de sucessivas gerações e que conheça várias adaptações ao cinema.

Depois da leitura – e porque não convém esquecer que estamos em aula de Português e a (nossa) vida (infelizmente) não é só Nárnia, estivemos a conversar sobre verbos introdutores do diálogo. E, também neste aspecto, este livro é de uma riqueza extraordinária.

Respondeu, retorquiu, disse, perguntou, segredou, replicou, repetiu, prosseguiu, interrompeu, comentou, exclamou, confirmou, gritou, reclamou, concordou, adiantou, sugeriu, contrapôs, murmurou, tratamudeou, declarou, insistiu, explicou, acusou, bradou…

E todos estes só hoje, em dois capítulos.

(Permitam-me este comentário e por favor não me crucifiquem: em A Floresta, de Sophia de Mello Breyner, por exemplo, isto é bem diferente. No primeiro diálogo entre Isabel e o anão, quando se conhecem, o único verbo utilizado é o verbo dizer. E nós que passamos a vida a dizer aos alunos que têm de variar, que não podem usar sempre disse, disse, disse… Sim, eu sei que há uma (UMA) excepção neste diálogo a que me refiro.)

O que eu quero dizer é apenas isto: pensem no Daniel Penac. Pensem em Donalyn Miller. Pensem em Jim Trelease. Leiam. Invistam tempo das vossas aulas na leitura. Ensinem o gosto pela leitura através da leitura e não com teorias estéreis.

Ou deveria dizer, talvez: descubri vós, professores, o prazer da leitura, o prazer supremo de ler uma história, de rir e chorar com as personagens. De descobrir mundos novos.

Repito o que já disse muitas vezes: se os meus alunos (que não são meus amigos aqui no Facebook, mas que seguem, alguns deles, aquilo que torno público, como por exemplo esta Nota) saírem das minhas mãos com o bichinho da leitura, eu terei alcançado o meu objectivo mais querido, aquele que me faz sair da cama todos os dias de manhã.

E, apenas para terminar: eu não coloco aqui fotografias de crianças. Nem das minhas filhas, nem dos meus alunos. Mas a sério que hei-de fotografar a minha Elisa, a minha Telma e os outros todos. A imagem dos vossos olhos, muito abertos, que não pestanejam enquanto leio, é uma imagem que guardarei para sempre.

Na primeira pessoa 2

Neste pequeno segmento, podemos testemunhar a reacção dos pais. Como esta actividade, tão simples, foi acolhida em casa.

Apenas uma nota para informar que estes segmentos foram “cortados” por mim. Por isso não estão lá muito bem… As minhas desculpas.

Na primeira pessoa

Hoje apetece-me. Ando há muito para fazer isto, e hoje é dia.

Este é o primeiro de uma série de pequenos segmentos da Grande Reportagem SIC que foi para o ar em Janeiro de 2012. Falava sobre o projecto de leitura que implementei com muito sucesso junto dos meus alunos do 2º ciclo – e que continuo a implementar, tendo alargado o público-alvo.

Neste primeiro vídeo, sob o olhar atento de um relógio que pára, cada aluno lê uma primeira frase de um conto diferente, dando uma ideia da variedade de temas sobre os quais lemos.

A menina que detestava livros

Vídeo

Como explicar que filho de peixe não queira nadar?
Os pais de Mina gostam mito de ler. Estão sempre a comprar livros novos, que se amontoam um pouco por toda a casa. Mina tem imensos livros, que os pais lhe foram dando, ao longo dos anos, mas que ela se recusa a ler. Mina detesta livros. Até que um dia… porque tudo é sempre até que um dia e, nisto dos livros, esse dia é aquele em que se descobre que os livros são portas para lugares mágicos, para seres extraordinários e para experiências inesquecíveis. O caso de Mina não deixa de ser uma reacção ao tempo infindável que os pais passam a ler – um aspecto sobre o qual devemos meditar.
Este filme é sempre um dos preferidos dos meus alunos, mas como eu gosto sempre mais de livros, ofereço-lhes o conto. Se quiserem, já sabem: é só dizer e envio por mail.

da leitura com as minhas filhas

Há quase quatro anos, escrevi sobre como procurava introduzir o hábito da leitura como algo regular, religioso mesmo, com as minhas filhas. A mais velha tinha na altura três anos e a pequenina era ainda muito pequenina: tinha doze meses.

Hoje, têm sete e quatro anos e eu tenho motivos para achar que, nisto do incentivo à leitura, fiz algumas coisas bem. A mais velha é uma leitora autónoma – o que não quer dizer que tenhamos deixado de lhe ler, de todo – e a mais nova é tão ou mais viciada em livros como a mãe, o pai e a irmã. Ou os três juntos.

Fiquem por agora com este texto, enquanto termino um outro, em que conto como vai a leitura das pequenas, cá em casa, no momento presente.

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Quero que a minha filha goste de ler. Ainda mais do que eu gosto. Tenho utilizado muitas estratégias para atingir este objectivo. Já há muito, o feedback que recebo indica que vou no bom caminho. Ela gosta que se lhe conte histórias (que eu conte, para ser mais precisa), mas gosta sobretudo de ver folhear o livro, de ver passar as páginas, de ouvir ler. De me ouvir ler-lhe.

(Um pequeno apontamento: falo na minha filha, no singular, porque a pequenina acaba de completar o primeiro ano de idade – e para tudo é preciso esperar pelo momento. A minha experiência como mãe de uma futura leitora cinge-se, por enquanto, à mais velha, que tem três anos.)

É claro que ela recebeu livros como prenda de nascimento e de primeiro aniversário: as Histórias e Contos Completos de Hans Christian Andersen e As Melhores Histórias dos Irmãos Grimm, respectivamente, mas trata-se de artigos “de luxo”, lá virá a sua hora.

Não foi assim que começou.

Tratei de fazer do livro um objecto normal, do dia-a-dia dela, tal como os guizos, a chupeta, a fralda que roçava com os dedos para adormecer.

O primeiro livro que ela teve era de pano, sobre o “Fundo do Mar”. As “folhas” faziam barulho e os seus cantos eram de borracha, para massajar as gengivas aquando do aparecimento dos primeiros dentes. Tinha uma asa, para ela poder agarrar, como todos os outros guizos que se destinam a bebés de três ou seis meses.

Seguiu-se um outro livro, com ilustrações giríssimas de animais marinhos (também), que era um brinquedo para o banho. Até no banho – um rápido duche – havia espaço para ler.

Quando se tornou possível interagir um pouco mais, ou seja: quando atingiu a idade que a irmã tem agora, apareceram os primeiros livros “a sério”: pequenos, à medida das mãos dela; cartonados, para serem mais resistentes, claro; com imagens, pouco texto, mas o suficiente para ela perceber que nos livros existia informação e que essa informação lhe interessava: as vozes dos animais, os seus filhotes, os elementos da Natureza, a relação entre os meios de transporte e a função a que estão destinados, o inevitável Natal, os frutos, as cores, os vegetais… Rapidamente os leu sozinha: abria na página com a imagem do perú e “lia”: “galu, galu”. Fazia as minhas delícias.

Vendo que estes estavam a “entrar”, arrisquei outros, que já contavam uma pequena história: uns livros da Anita, pequeninos, também cartonados (o que, além do mais, lhe facilitava o folhear), com oito ou dez páginas daquelas belíssimas ilustrações acompanhadas de uma ou duas frases muito simples, que resumiam os livros da Anita que conhecemos de toda a vida. Rapidamente começou a comentar a leitura: “totó”, quando a protagonista ia brincar para a neve sem casaco nem gorro, apontava para a imagem do gato quando eu lia que ele fora visitar a Anita, convalescente, etc.. Associava o livro à pessoa que lho oferecera.

Quando tinha dezoito meses, a sua capacidade de concentração já me permitia ler-lhe as histórias de um livro que recomendo a todas as mães e que encontrei nas prateleiras de um supermercado: Boa Noite, Ursinho. Um vistoso “calhamaço” com três histórias lindíssimas que a mãe Urso lê ao seu filhote para o colocar nas asas de Morfeu: histórias sobre a hora de dormir, que surge como uma coisa boa, sem bruxas, lobos maus ou outros seres capazes de despertarem pesadelos. Aprendeu-as de cor, como seria de esperar, de tantas vezes que lhas li por sua própria insistência, exigência, até.

Entretanto, o cuidado que tinha ao manusear os livros foi evoluindo também e isso permitiu alargar o leque: aos dois anos e pouco já folheava sozinha livros de folhas finas, sendo de registar que nunca rasgou nenhum.

Quando a irmã nasceu, a três meses do seu terceiro aniversário, perguntámo-nos que prenda lhe deveria trazer, o que a faria mais feliz, que presente seria mais especial. Rapidamente concluímos que aquilo que lhe dá mais prazer são os livros.

Mais tarde, quando se tornou vital criar em casa um espaço chamado “quarto dos brinquedos”, tentei uma nova “casca de banana”: junto às quatro prateleiras que já tem repletas de livros, coloquei o seu sofá, à sua medida, e uma manta que trouxe o Pai Natal, “para pores nos joelhos, se tiveres frio”. Tenho de confessar que fiquei admirada quando a vi ir directa a esse cantinho, colocar a manta nos joelhos e escolher um livro. Pode ter sido da novidade, de ter ficado assoberbada por ver os seus brinquedos, tantos, subitamente arrumados de maneira que tinha acesso a todos, o que até aí não acontecia, mas a verdade é que já se passaram vários meses e esse continua a ser o seu cantinho favorito. Dentro e fora de casa: um sofá e um livro são os ingredientes perfeitos para um bom pedaço de tempo.

Recentemente, de um momento para o outro, tivemos de sair de casa para dormir fora, situação que, sabíamos à partida, se prolongaria por uma semana. Ficou incrédula quando, à hora de dormir, nos apercebemos de que não havia livro – apenas conseguimos encontrar dois, “de bebé”, que é o que chamamos aos livros que não têm praticamente texto, que apresentam a história muito resumida. Lá lhos li, acrescentei histórias sem livro e lá passou a primeira noite.

Quando, no dia seguinte, com mais calma, fui a casa munir-me dos “precisos” para a semana, escolhi uma série de livros e levei-lhos, dentro de uma mochila. Ao chegar, disse-lhe que lhe trazia uma surpresa. Ao perceber que se tratava de uma mochila cheia de livros por onde escolher para cada noite, o seu rosto iluminou-se num sorriso!

Quais são as suas preferências? Os contos tradicionais, sem dúvida alguma. Os Três Porquinhos, Capuchinho Vermelho, O Gato das Botas, por aí adiante. Tipicamente, ouve-os vezes sem conta, seguidas, até eu os saber de cor. Primeiro em silêncio. À terceira ou quarta vez, começa a fazer uma perguntita sobre o enredo. Quando as perguntas começam a ser muitas, é sinal de que já percebeu, já assimilou todos os detalhes que lhe são importantes. Então, passa-se a outro conto. Este processo demora vários dias, claro.

Para minha surpresa (e estou a ser sincera) há novas colecções de livros, muitas vezes inspiradas em séries de televisão, que são muito bonitos, de que ela também gosta muito e que encerram informação importante e bem transmitida sobre os valores da amizade, da entreajuda, do trabalho. Quanto a mim, o problema é que são livros que se baseiam em filmes, sendo que o filme é frequentemente mais completo e mais interessante do que o livro, contrariando aquilo a que estamos habituados.

Com os contos tradicionais, o problema que surge é de outra natureza. A fúria editorial é tamanha que algumas edições recriam as histórias. Por exemplo: tenho uma versão de Os Três Porquinhos em que, em vez de cada irmão construir a sua casa, constroem os três as três casas, em sucessivas tentativas de escaparem ao lobo mau, o que desvirtua completamente, na minha opinião, a mensagem central do conto: o arquétipo de que a união faz a força.

Não sei dizer se a minha estratégia é a perfeita, se há mais e melhores coisas que eu poderia ou deveria fazer, mas uma coisa é certa: não raras vezes, encontro-a sentada num sofá, no chão, com um livro, que “lê”, em voz alta, a si própria. Conhece mais verbos introdutores do diálogo (dos complicados) do que os meus alunos de sexto ano que obtêm classificação “C” na Prova de Aferição. Sem nunca ter convivido com famílias judias, sabe que existe e o que é um menorah.

Um livro é o que escolhe para oferecer, nos aniversários, aos amiguinhos, porque, para ela, um embrulho que faça adivinhar um livro é o que lhe desperta mais curiosidade, o que abre com maior avidez.

[texto escrito em 2009]