Um segredo para a minha Mãe

Enquanto espero pelas festas, penso em todos os Natais calorosos e maravilhosos de quando era criança, e dou-me conta de que um sorriso me ilumina o rosto. Na verdade, são tempos que vale a pena recordar! Contudo, reparo que, à medida que fui ficando mais velha, as memórias do Natal tornaram-se menos vívidas e foram-se transformando numa época triste e deprimente… até ao ano passado. Foi  nessa data que creio ter recuperado a alegria própria da infância. A alegria que  eu sentia quando era criança…

♥♥♥

Todos os anos me canso à procura de algo para oferecer à minha mãe no Natal. Mais um roupão e uns chinelos, um perfume, umas camisolas? Tudo prendas interessantes, mas que não dizem Amo-te da maneira que deviam dizer. Desta vez, queria algo de diferente, algo que ela recordasse para o resto da vida… Algo que lhe devolvesse o sorriso na cara e a ligeireza no andar. A minha mãe vive sozinha e, por muito que eu queira passar algum tempo com ela, só consigo, com o meu horário, fazer-lhe visitas esporádicas. Portanto,  tomei a decisão de ser o seu Pai Natal secreto. Mal sabia eu como acertara!

Saí e comprei todo o tipo de pequenas prendinhas e, depois, passeei-me pelas zonas  mais caras do centro comercial. Arranjei pequenas ninharias, coisas que eu sabia que apenas a minha mãe iria apreciar. Levei-as para casa e embrulhei-as, cada uma de maneira diferente. Depois, fiz um cartão para cada uma  delas. Tudo de acordo com a canção “The twelve days of Christmas.” [“Os doze dias de  Natal”]. E dei  início à minha aventura.

♥♥♥

O primeiro dia foi tão emocionante! Deixei a prenda junto à porta do apartamento  dela. Depois, apressei-me a telefonar-lhe, fingindo que era só para saber como  estava de saúde. A minha mãe estava radiante! Alguém lhe tinha deixado ficar uma prenda e assinado “Pai  Natal secreto.”

No dia seguinte, a cena repetiu-se. Quatro ou cinco dias depois, fui a casa dela, e  o meu coração quase rebentou de alegria. Tinha disposto todas as prendas em cima da mesa da cozinha e andava a mostrá-las aos vizinhos. Durante todo o tempo da minha visita, a minha mãe não parou de falar no admirador secreto… Estava no sétimo céu!

Telefonava-me  todos os dias com notícias da nova prenda que tinha encontrado ao acordar! Tinha  decidido “apanhar” a pessoa responsável por tudo aquilo e ia dormir no sofá, com  a porta completamente aberta. Por isso, nesse dia, tive de deixar a prenda mais tarde, o que a deixou aflita: será que as prendas tinham acabado?

O último dia era um sábado e o cartão dizia-lhe para se vestir e que devia ir até  ao Applebee’s para jantar. Era sinal  de que iria, finalmente, conhecer o seu Pai Natal secreto. O cartão dizia, também, que pedisse à sua filha Susan (que sou eu) para a levar lá. Acrescentava, ainda, que reconheceria o Pai Natal secreto pelo laço vermelho que ele usaria.

Fui buscá-la e lá fomos nós. Depois de chegarmos e de nos instalarmos, a minha mãe olhou em volta. Perguntava-se, sem dúvida, quando iria conhecer o seu Pai Natal secreto… Devagar, tirei o casaco e exibi o laço vermelho. A minha mãe começou a chorar. Estava mais feliz do que nunca!

Senti-me tão contente quando tudo acabou!

E lembrei-me de uma coisa muito importante: a minha mãe ensinara-me, em criança, que era melhor dar do que receber. Por isso, todos os anos em que estive triste  durante as festas, foi porque procurei mais receber do que dar.

Agora,  podia, finalmente, sentir-me feliz.

Susan  Spence,2008

(Tradução  e adaptação)

Por falar em Natal…

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E aqui está a nova fotografia de capa, também no Facebook. Que melhor prenda do que um livro? O melhor dos amigos, o mesmo hoje e sempre. O único presente que podemos abrir uma e outra vez, na certeza de encontrarmos sempre algo novo.
Já escreveram ao Pai Natal? Eu peço sempre livros e na lista deste ano está uma maravilhoso: The Fantastic Flying Books of Mr. Moris Lessmore. Procurem o vídeo na categoria que está aqui ao lado direito.

Um presente antes do Natal

christmas wreath

Ding, dong!
Mal ouvem a campainha tocar, precipitam-se a correr para as escadas.
Ding, dong!
— Eu é que vou abrir — diz Gabriel à irmã mais velha.
— Não, sou eu, é a minha madrinha que vem cá almoçar!
Matilde é a primeira a chegar à porta e abre-a toda contente. Lá está a Madrinha carregada com um grande embrulho. O Pai e a Mãe vêm recebê-la. A Mãe ri-se e ralha um pouco com a Madrinha:
— Um presente? Antes do Natal? Dás demasiado mimo à tua afilhada.
A Madrinha entrega o presente à Matilde e, enquanto despe o casaco, explica:
— Não é um presente de Natal. É um presente de Advento. É para toda a família.
Matilde e Gabriel arregalam os olhos. Um presente de Advento, o que é que poderá ser? Já têm um calendário do Advento com muitas janelinhas que se abrem, uma por dia. Não pode ser outro!
— O que é um presente de Advento? — pergunta Matilde.
A Madrinha abraça-a e diz:
— É um presente que ajuda a esperar pelo Natal e que já dá um arzinho de festa à casa! Anda lá, abre!
Matilde desfaz o embrulho e descobre uma linda coroa feita de ramos de pinheiro, com uma belíssima renda de seda vermelha. No centro, encontram-se mais quatro embrulhinhos de tamanhos diferentes. O pai e a mãe sorriem.
— Nós já adivinhámos o que é! É uma boa ideia. Obrigado!
Intrigados, Matilde e Gabriel abrem os embrulhos. Encontram quatro velas vermelhas, uma muito grande, uma menos grande, uma média e uma pequenina. A Madrinha coloca-as nos castiçais que estavam escondidos na coroa.
— Aqui têm a vossa coroa do Advento. Sabem como usá-la?
— Cada um acende a sua vela — diz Gabriel. — O pai a maior, a mãe, a outra a seguir, a Matilde a média e eu a mais pequena.
— Pode ser. Porém, as quatro velas não representam as quatro pessoas da família, mas as quatro semanas do Advento. Sabem o que é o Advento?
— É o tempo antes do Natal— diz Matilde com ares de importância.
— É quando esperamos pelo nascimento de Jesus e pelos chocolates — acrescenta Gabriel com um ar de glutão.
— É isso mesmo — diz a Madrinha. — Hoje é o primeiro dia do Advento. Portanto, acende-se a primeira vela. A maior. No próximo Domingo, a segunda. E assim por diante. É uma forma de dizer que Jesus é a luz que ilumina a nossa vida!
O Pai pousa a coroa em cima da mesinha da sala e acende a primeira vela.
— Porque é que as velas não são todas do mesmo tamanho? — pergunta Matilde.
— Porque a primeira vai arder durante mais tempo do que a última — explica a Madrinha. — E assim, na noite de Natal, têm todas o mesmo tamanho! É mais lindo assim, não?

Christine Pedotti
24 histories de Noël pour attendre Jésus
Paris, Mame, 2007
(Tradução e adaptação)

O Tomás, que não acreditava no Pai Natal

Era uma vez um menino que não acreditava no Pai Natal e fazia troça de todos os outros meninos da escola, e dos irmãos e dos primos, e de qualquer pessoa que dissesse que o Pai Natal existia mesmo e vivia no Pólo Norte.

— Isso são histórias para bebés — dizia o Tomás.

E quando via alguém a escrever uma carta ao Pai Natal, tentava agarrar o papel e, se conseguia, rasgava-o mesmo! E dizia que não era nada um dos anões do Pai Natal que vinha buscá-la.

O Tomás ia para a escola todos os dias de autocarro. A mãe levava-o até à paragem e, se fosse preciso, ele ficava lá sozinho um bocadinho à espera que o autocarro passasse. Naquele dia foi assim que fez. Mas estava tão distraído que nem reparou que o autocarro era encarnado e não cor-de-laranja. E quando ia mostrar o «passe» ao condutor, deu um salto de susto:

— O que é que faz uma rena de nariz encarnado a conduzir um autocarro!? — gritou ele.

A rena é que não ficou nada incomodada com a má-criação do Tomás e respondeu a rir:

— Sempre guiei este autocarro!

— Mas para onde é que ele vai? — quis saber o Tomás, já muito aflito.

— Para o Pólo Norte, claro. Temos de que levar pessoas de todo o mundo para ajudar a tratar dos presentes para o Natal, e por isso vimos buscá-las a casa, porque há muito poucos aviões para lá… e são muito caros.

— Mas o Pai Natal não existe e o Pólo Norte também não! — exclamou o Tomás, furioso, a bater com força com as mãos no varão onde as pessoas se seguram para não cair.

Aí ouviu-se uma gargalhada enorme, que encheu o autocarro todo. O Tomás virou-se para trás e viu que os lugares estavam todos cheios de pessoas, de duendes e ursos, e de anões e de rapazes e raparigas como ele. Iam todos para o Pólo Norte ajudar o Pai Natal, e achavam que a frase do Tomás era a mais idiota que já tinham ouvido:

— Ah, és daqueles que não acreditam em nada que não vejam — disse um duende, de orelhas em bico e chapéu verde, enfiado quase até aos olhos.

— Também não precisas de esperar muito para acreditar, porque daqui a duas horas estamos lá — acrescentou um anão, de picareta pousada no banco do lado.

O Tomás pensou: «Desde esta história dos atentados, não deviam proibir de entrar nos transportes públicos as pessoas que trazem picaretas de pontas afiadas?!»

Mas calou-se e não disse nada, porque se havia coisa que detestava, era que fizessem troça dele. Fazer troça dos outros, como fizera com todos os que acreditavam no Pai Natal, era divertido, mas ser gozado era completamente diferente…

Sentou-se no primeiro banco que viu vazio. Ufa! Ainda bem que não tinha uma daquelas criaturas sentadas ao lado a seringar-lhe o juízo.

Quando um urso polar pequenino se virou para trás e lhe deitou a língua de fora, o Tomás ainda explodiu:

— Quando a minha mãe disser à polícia que desapareci, vocês vão ver!!!

Mas aí a gargalhada ainda foi maior:

— A polícia não anda atrás de meninos que estão à guarda do Pai Natal! — disseram todos em coro.

E o Tomás achou mesmo melhor não voltar a abrir a boca.

Foi olhando pela janela e percebeu que o autocarro já não tinha as rodas na estrada, mas voava pelos céus.

O dia tinha-se transformado em noite e o Tomás, que sabia alguma coisa de geografia, percebeu que estavam a ir para muito longe. Lá ao longe via neve, e estrelas… quando na terra dele ainda eram hora de estar na escola.

— Pólo Norte, última paragem! — ouviu-se a voz da rena-motorista a gritar.

Toda a gente se levantou e começaram a empurrar-se uns aos outros, tal era a pressa de sairem.

O Tomás esperou que se fossem embora e ficou ali sem saber o que fazer. Talvez o autocarro voltasse agora para Portugal e passasse outra vez na rua dele… E assim ele voltava para casa, sem se assustar mais. Porque o Tomás estava assustado… E um bocadinho envergonhado.

Mas não teve sorte nenhuma, porque, quando levantou os olhos, viu o Pai Natal em pessoa, de pé, parado ao lado do banco onde estava sentado.

— Não me vens ajudar a fazer presentes de Natal? — perguntou o senhor de barba muito branca.

«Realmente, parece o Pai Natal», pensou o Tomás, «se o Pai Natal existisse, claro». E porque o Tomás era teimoso e não gostava de dar o braço a torcer (quem é que gosta?), ainda estendeu a mão para puxar a barba, não fosse isto tudo ser um teatro e o Pai Natal um daqueles velhos que trabalham nos centros comerciais. Mas a barba não saía, e o Tomás percebeu que nada daquilo era um sonho e que estava mesmo no Pólo Norte. E que aquele era o Pai Natal de carne e osso.

E como o Tomás era casmurro, mas não era burro, percebeu que se tinha enganado e que, já que estava ali (e ainda por cima não tinha de ir à escola!), o melhor era divertir-se o mais que podia. Durante muitos dias, ajudou a fazer e a embrulhar presentes para todos os meninos do mundo, e ficou muito amigo de duendes, anões, ursos e renas, e de todas as outras criaturas estranhas que por ali apareciam.

Mas, uma noite, não conseguiu adormecer. Não queria dizer nada a ninguém, mas estava triste porque sabia que não tinha mandado nenhuma carta ao Pai Natal e que, por isso, não ia receber presentes.

— E até é bem-feito, para ver se aprendo a não ser estúpido — pensou baixinho o Tomás, cheio de remorsos por ter rasgado as cartas dos irmãos mais pequenos e de ter troçado tanto dos amigos.

Mas, na manhã seguinte, o Urso Polar Grande, que era tio dos mais pequeninos, veio ter com ele às escondidas e deu-lhe um papel e um lápis:

— Escreve depressa a tua carta, que eu depois meto-a no cesto das cartas que o Pai Natal ainda não abriu.

O Tomás nem queria acreditar na sorte que tinha! E escreveu, escreveu e escreveu, porque sabia que era tudo verdade.

Na noite de Natal, o Pai Natal levou-o com ele no trenó e deixou-o cair pela chaminé com os presentes para a mãe, para o pai e para os irmãos. A mãe nem ligou aos presentes dela, só queria pegar no Tomás ao colo e enchê-lo de beijinhos. O Tomás dizia:

— Blhec, mãe, não me lambuze todo… — mas continuava muito encostadinho a ela.

A mãe fez-lhe um leite com chocolate quente e, quando ia metê-lo na cama, disse:

— E já foste ver se o Pai Natal te deixou alguma coisa na tua Meia de Natal? – (nesta casa punham meias ao fundo da cama, em lugar de sapatos na chaminé).

Mas o Tomás abanou a cabeça e respondeu:

— Acho que não tenho nada, porque o Pai Natal deixou-me cá com todos os presentes e eu não vi nenhum para mim.

Só que, quando olhou para a meia, ela estava cheia de presentes até acima. O Tomás ficou tão comovido (que é quando os olhos picam de lágrimas e um nó bom aperta a garganta), que foi a correr para a janela para ver se ainda ia a tempo de agradecer ao Pai Natal.

Lá longe, viu um trenó e um homem de barbas brancas a dizer-lhe adeus. O Tomás, naquela excitação, chamou a mãe:

— Mãe! Mãe! É o Pai Natal! A mãe consegue vê-lo?

— Claro que consigo — disse a mãe.

E conseguia mesmo.

Isabel Stilwell
Histórias para contar em 1 minuto e ½
Lisboa, Verso da Kapa, 2005
adaptado

Renascimento

Tinha estado um dia medonho de Inverno e a noite não parecia que fosse ser melhor. Os meus medos confirmaram-se quando, ao sair do trabalho, desabou uma chuva furiosa, como se à última hora quisesse vingar-se ainda de alguma coisa.
Durante a tarde ainda conseguira secar a roupa molhada à hora do almoço mas, invariavelmente, os sapatos teimavam em não secar. Apesar de ter trocado de meias — já não era a primeira vez que isto me acontecia — a chuva ameaçava voltar a penetrar nos sapatos. E já sentia as pontas dos dedos começarem a gelar.
Claro que, se não fosse o Natal, as encomendas que quadruplicam, os “faxes” do estrangeiro, os emails que precisam de resposta urgente, o trabalho que tem de ficar pronto dê por onde der, isto não teria acontecido.
Isto o quê?
Tudo: não teria apanhado com o aguaceiro, não teria apanhado com a água que o condutor daquele carro, tão apressado em ir para casa, me atirou para cima, não estaria encharcada e sozinha àquelas horas da noite, à espera de um autocarro que teimava em não chegar.
É incrível a quantidade de coisas de que me lembro em momentos destes, ainda para mais agora, que estamos no Advento.
Lembrei-me de quando era pequena e acompanhava a minha mãe nas muitas voltas que ela tinha a dar pela cidade. Por incrível que pareça, quanto mais frio e chuva e nevoeiro houvesse, mais eu gostava daquele passeio. Não sei se ela barafustava contra o tempo; é provável, se bem que raramente a tenha ouvido. Eram as luzes das ruas e das montras iluminadas, os pinheiros enfeitados, as caixas embrulhadas que faziam de prendas — e eu, tão ingénua, nem suspeitava que as caixas estavam vazias!
E o cheiro.
O cheiro de Natal é um cheiro muito especial. Acho que aquela mistura de canela com cravinho tem, antes de tudo, a função de aquecer o espírito. Quando chegávamos a casa, a minha mãe gostava de fazer um chá de especiarias. Às vezes eu bebia, outras vezes deitava-as no leite.
Mas porque me lembrei da minha mãe e das nossas andanças pela cidade durante o Inverno? O que tem isso a ver com os meus sapatos encharcados?
Era a minha mãe que me calçava as botas. Não sei bem que botas eram. Lembro-me sempre, e nunca hei-de esquecer-me de, apertados os cordões ou corrido o fecho ou enfiado o pé, da palmadinha carinhosa que me dava sempre no final:
— Pronto, aqui não entra água.
Não sei se entrava, nem se não. Para mim, era como se aquela palmada vedasse toda a água e todo o mal que dali pudesse vir. Podia passar por todas as poças de água da cidade, que nunca as minhas meias se molhavam. Provavelmente, usava botas de borracha, daquelas com uma cara de sapo e uns olhos em relevo. É o mais certo.
Já muito mais velha, ainda inventava mil e uma desculpas para que fosse ela a apertar-me os sapatos ou o casaco. Precisava daquela protecção, da certeza de que havia alguém que zelava por mim, que estendia a mão por cima da minha cabeça.
Quando morreu, senti que ia deixar de estar protegida. Senti-me órfã, embora a família até fosse grande. Senti-me desamparada. E tentava colmatar esse vazio no grupo de amigos, nas saídas semanais, nos vícios e dependências. Até hoje continuava a vaguear pelas minhas memórias, perdia-me e acabava por adormecer nelas sem encontrar a saída. O Advento e o Natal significavam uma tristeza e solidão da qual eu não conseguia sair.
Terá mesmo de ser assim? Não haverá uma forma de ultrapassar estes sentimentos?
A colega com quem partilho o gabinete levou hoje uma coroa do advento, oferta de um amigo que foi de viagem não sei onde.
— Importas-te que a acenda aqui?
Não, não me importava.
Ela acendeu a primeira vela. Passados uns minutos tinha-se espalhado pelo ar um cheiro a Natal, AQUELE cheiro a Natal. Fixei a vela. Não sei o que se passou naquele momento, mas foi como se aquela luz, aquele cheiro, tivessem sarado todas as minhas angústias e tristezas e iluminado o começo de um caminho. Nem sei se vi ou se senti.
— Desculpe, posso sentar-me?
Assustei-me. Ao meu lado estava um homem de aspecto simpático que eu não dera por chegar. E sorria.
— Claro… sim, claro!
E a água já a ameaçar as meias…
— Está cá um tempo!
E fixou os meus sapatos.
— Não me leve a mal… mas parece que tem os pés molhados.
— Sim, foi o aguaceiro.
— Não quero incomodá-la mas tenho aqui umas botas, as últimas desta colecção, que não consigo vender. Ou é a cor, ou o feitio, ou o número, enfim… Já desisti e resolvi levá-las para casa. Pode ser que encontre alguém a quem sirvam. Pelos vistos, não querem é ser vendidas, só dadas!
E riu-se. Um riso alegre, claro, saudável.
— Quer experimentá-las? É trocar uma semana de gripe por um par de botas. Se ainda quiser pensar na oferta…
Ri-me. Claro que aceitei as botas.
Calcei-as – já tinha uma gota de água em cada meia – e ajustei o pé. Eram o meu número!
— Pronto, aí já não entra água.
O que é que ele disse?
— Sabe que rebentou um cano mais acima e o autocarro teve de dar uma volta mais longa. Vai demorar mais tempo a vir — disse enquanto tirava qualquer coisa da mala de couro. Uma caneca térmica? — Antes de fechar a sapataria fiz um chá. É de especiarias, não sei se gosta. Aceita um copo?
E já me estendia um na minha direcção.
Agradeci e agarrei-o com as duas mãos. Fumegava e tudo! Ao inspirar, qualquer coisa estalou dentro de mim. Vi a vela da escritório, o cheiro, as botas, a minha mãe, a luz, e uma criança deitada, a sorrir, estendendo os braços na minha direcção, e senti uma alegria imensa. Tive a certeza de que não estava só, nem órfã, nem desamparada.
— Muito obrigada por tudo! — disse ao meu companheiro. Mas ele já lá não estava.
Só estava eu a apertar um copo nas mãos como se fosse um cálice sagrado.
— A menina entra ou vai esperar pelo próximo autocarro? Olhe que o próximo é só às seis da manhã!
E o motorista sorria.

A verdadeira história do Pai Natal

As ruas da cidade estão enfeitadas com iluminações coloridas. Há tantas luzinhas! Parece que todas as estrelas do céu caíram e ficaram presas nas janelas… O Gonçalo sonha… Enquanto olha pela vidraça para a neve branca e leve.

Esta noite o Pai Natal vai passar!

Vem então aninhar-se nos braços da sua mãe. Tem tantas coisas para lhe perguntar…

— Mãe, onde mora o Pai Natal? O que é que ele faz durante todo o ano, enquanto espera pela época do Natal? E como é que ele me vai trazer os brinquedos que eu pedi?

— Vá lá, tem calma, diz-lhe a mãe. Se quiseres levo-te ao país do Pai Natal! Vou contar-te a verdadeira história do pai Natal…

O Pai Natal vive numa casinha muito pequena que fica no meio da neve e dos glaciares, longe, muito longe daqui. Está tão bem escondida entre os pinheiros, que ninguém consegue vê-la. É uma casinha muito quentinha e muito acolhedora porque o Pai Natal é muito sensível… Mas, nunca lá entrou ninguém! Ele é um velhinho bondoso, mas não gosta de curiosos…

— Mãe, se eu pudesse espreitar pela janela, achas que conseguia ver o piano eléctrico que pedi?

— Oh! não. Irias perturbar o Pai Natal: na sua oficina, diante da velha banca de trabalho, com as ferramentas, que continuam sempre novas, ele fabrica os brinquedos para todas as crianças do mundo. Ele aplaina, corta, martela, cola, pinta… Ah! Ele tem muito trabalho!…

Mas o Pai Natal acaba de olhar para o calendário…

“Como? Hoje é dia 24 de Dezembro? Já?” Há um ano que ele trabalha, todos os dias, para que os brinquedos de todas as crianças do mundo estejam prontos. “Rápido, o meu cesto! Mas o meu casaco está cheio de pó e as minhas botas precisam de ser engraxadas… Ah! Ai Ai! Não tenho tempo…”

Com uma escovadela, a poeira desaparece e o casaco fica novamente bem vermelho, a gola recupera a cor da neve e as botas brilham como um espelho.

A porta abre-se ruidosamente com um golpe de um casco.

“Temos fome!”, gritam “Stem” e “Schuss”, as duas renas do Pai Natal, as duas únicas renas do mundo que sabem falar.

“Não me esqueci de vós! Tenham um pouco de paciência, as duas… Tenho de calçar as botas”, resmunga o Pai Natal.

O Pai Natal tem bastante dificuldade em calçar as suas botas. Há um ano que não o fazia e os seus pés já não estavam habituados a um espaço tão estreito… Mas, por fim lá consegue! Lá vai ele ter de sair da sua casinha… ela é tão quentinha e tão acolhedora! E lá fora, naquele grande frio glacial, a neve é tão espessa! E ainda por cima é preciso levar aqueles embrulhos todos… Há tantos e o cabaz é tão pesado!

— O que é um cabaz?, pergunta o Gonçalo.

— É um grande cesto em vime onde o Pai Natal leva todos os brinquedos. Para caminhar, ele põe-no às costas. Vês como o cesto vai carregado!

Apesar da neve espessa e do frio, “Stem” e “Schuss” estão radiantes: é noite de Natal! Elas vão ter a mais bela saída do ano. O Pai Natal prepara-as com todo o cuidado. E, enquanto as atrela, acaricia-as com suavidade. Depois, carrega o seu trenó mágico com embrulhos multicolores que nunca mais acabam! Será que já estão todos? “Não me posso esquecer de ninguém! Não poderemos voltar para trás, porque esta noite vamos estar muito longe!”, diz ele às suas renas.

— Diz-me, mãe, ele vai passar por nossa casa?

— Claro! O Pai Natal não se esquece de ninguém…

Chegou a hora da partida! O Pai Natal comanda as suas renas. “Juntas, juntinhas, voai, voai, minhas queridinhas!” E logo o trenó sobe em direcção às estrelas.

Um último olhar para a sua pequena casinha, para verificar se as luzes estão apagadas, e aí vão eles pelo céu escuro… Ao longe, o trenó luminoso parece-se com uma estrela cadente que tilinta como uma campainha: “Tlintlim! Tlintlim!”. O Pai Natal também está muito contente. Por isso canta a canção de Natal que ensinou a “Stem” e a “Schuss”, as duas únicas renas do mundo que sabem cantar. É uma canção tão bonita que embala a Lua e afasta as nuvens…

— Oh! mãe, parece que estou a ouvir…

Depois de uma viagem muito, muito longa, o trenó chega à cidade adormecida e fica a pairar por cima dela. De repente, pára, como por encanto, ao lado do telhado de uma grande casa. “Stem” e “Schuss” também sabem fazer alguns truques de magia! O Pai Natal olha para a casa silenciosa. É preciso que todas as luzes estejam apagadas! Então, carregando o seu cesto, ele entra na chaminé! Mas resmunga um pouco…

“Ui! Ou a minha barriga está muito grande, ou este ano as chaminés estão demasiado estreitas! Vamos lá a uma escorregadela por aqui abaixo!”

— E eu escondia-me e ficava muito quieto a ver o Pai Natal, diz o Gonçalo!

— Oh não! Ouvi dizer que ele não distribui brinquedos aos meninos que não estão a dormir…

Está bem escuro dentro de uma chaminé! Felizmente o pinheiro tem muitas luzinhas acesas. Senão como é que o Pai Natal descobriria o caminho?

“Ora vejamos! Não me posso enganar. A Carolina pediu-me uma casinha de bonecas e o Paulo um robô. Hum!… E a Camila, a bebé da casa, já não me lembro… Ora vamos lá a ver a carta com os pedidos… É isso: um ursinho de peluche! E ainda um osso com música para Piloto, o cãozinho…” E assim, durante toda a noite, o Pai Natal passa pelas casas de todas as crianças do mundo.

Sabias que há crianças que põem duas cenouras junto à chaminé para “Stem” e para “Schuss”, as renas do Pai Natal?

O Pai Natal terminou a sua viagem. “Adeus, meninos e meninas! O dia está a começar: temos de voltar para casa! “Juntas, juntinhas, voai, voai, minhas querídínhas!” E o trenó do Pai Natal eleva-se no ar com suavidade. Atrás dele, uma grande nuvem cor-de-rosa esconde-o até a cidade ficar bem longe. As crianças estão quase a acordar e o Pai Natal não se quer mostrar. Ele ainda tem uma longa viagem a fazer até à sua pequena casinha, longe, longe, muito longe daqui.

— Como eu gostaria de andar naquele trenó, diz o Gonçalo, a sonhar…

Depois da sua longa, longa viagem de regresso, o Pai Natal chega finalmente a casa. Deixa-se escorregar com prazer sobre a poltrona. Está tão cansado que nem descalçou uma das botas… Mas sorri, muito feliz. Ele sonha com a alegria de todas as crianças do mundo que, agora, rasgam os papéis dos embrulhos para descobrirem os seus brinquedos!

“Acho que não me esqueci de ninguém…”

“Stem” e “Schuss” estão um bocadinho tristes. Elas olham para o cesto vazio com alguma pena… Mas também estão muito orgulhosas por terem galopado tão bem por entre as estrelas. E que elas conhecem perfeitamente todos os caminhos do céu…

— Mãe, será que eu posso pôr duas cenouras perto da chaminé?, pergunta o Gonçalo a suspirar.

Chegou a noite de Natal…

O Gonçalo pôs os seus sapatos junto à chaminé e deixou uma pequena vela acesa perto do pinheiro. O Pai Natal precisa de luz para ler a carta com os seus pedidos… Para que não se esqueça de nada!

Querido Pai Natal,

Gostaria de ter uma bicicleta de montanha para subir e descer as colinas, e aquele livro que vi na biblioteca, e um piano, e uma caixa confortável para que o meu ratinho branco fique bem quentinho quando chove.

Obrigado, Pai Natal!

Gonçalo.

O Gonçalo sonha… Que história! E como esta é uma história verdadeira, deve ser um verdadeiro Pai Natal…

Colette Seigue; Téo Puebla
A verdadeira história do Pai Natal
Porto, Porto Editora, 1995
Adaptado

O melhor Natal do António


A mãe chegou a casa atordoada, a queixar-se dos pés e a barafustar contra as lojas cheias de pessoas. O pai do António é que ouviu:
— Chego a casa e é este cheiro a fritos. Não estás farto de saber que me enjoa? Para mais grávida, e no oitavo mês.
— Desculpa — respondeu ele, atrapalhado — era para ser uma surpresa, gostas tanto de sonhos…
— Olha, desculpa-me tu, mas sinto-me tão mal…
Deram um beijo e ela foi deitar-se um pouco, agora a sentir-se mais culpada do que cansada, e foi ele, desconsolado, arrumar a cozinha.
O António levantou-se do sofá, foi encostar a porta da sala e ligar a televisão. Desligou-a logo de seguida: todos os natais o mesmo filme!
Felizmente, chegaram os avós e foram os três jogar à sueca aberta. Entretanto, os pais apareceram, com ar de quem já fizera as pazes e trouxeram figos, amêndoas, nozes, pistáchios e pinhões.
A avó afastou os cabelos dos olhos da mãe do António, como fazia quando ela ainda era a sua filhota esgrouviada, e perguntou-lhe:
— Lembras-te, Leonor, de quando ia buscar-te ao colégio e passávamos pela loja dos pássaros e eu te comprava um colar de pinhões? Só os comias em casa, porque gostavas de ir na rua com o colar, vaidosa…
— Eram ao preço da chuva, não eram? Até custa a crer.
Na televisão estava uma locutora a dizer que já ninguém enfeitava a árvore com fitas, que agora se usavam laços e que havia cada vez mais decorações de Natal: era o fecho das notícias. O António olhou para a árvore lá de casa, igual todos os anos, com bolas de várias cores e fitas prateadas e douradas, largas e muito fininhas, e pensou se seria uma árvore feia. Depois olhou para a locutora e percebeu que feia era ela.
Quando a tia Cristina chegar — pensou o António — com o tio Rui e as gémeas, vai ter tudo de andar encostado às estantes, a encolher a barriga. Na casa da avó sempre há mais espaço; aqui, a árvore de Natal quase ocupa a sala.
Faltava ainda o tio Gastão, mas esse não viria. É o único irmão do pai do António. Sente-se pouco à vontade entre muitas pessoas, de modo que não gosta especialmente do Natal, embora lembre com saudade os natais de quando era pequeno e os pais ainda eram vivos.
Naquele dia, o tio tinha ido buscar o António para o levar a almoçar fora. Preferiram ir a pé, a sentir o frio seco dos dias de Natal que chama as lágrimas aos olhos, põe os narizes vermelhos e faz andar as pessoas mais depressa nas ruas.
Passaram por três pais natais a distribuir publicidade de máquinas de lavar e coisas assim. Lembrou-se o António:
— Se os miúdos mais pequenos vêem estes pais natais todos, ficam a perceber que não há aquele outro.
E o tio Gastão, que há muitos anos deixou de acreditar no Pai Natal, pensou que realmente o que lhe valia era ter aquele sobrinho.
No restaurante chinês, o António pediu duas tigelas de arroz chau-chau e três crepes, que comeu com garfo e faca, orgulhoso do tio, que comia com pauzinhos como se fosse a coisa mais fácil do mundo.
Antes de se despedirem, já em casa, o tio Gastão tirou do bolso um presente para o António: uma enorme caneta preta, antiga e de tinta permanente, que o António se habituara a admirar no escritório do tio.
Para o Zé Manel, o Natal significa ter mais formas de bolos para lamber, uma árvore para tentar deitar ao chão, com muitas bolas e fitas para arrancar, e o colo das gémeas. É difícil compreender a simpatia que ele tem pelas primas do António, mesmo porque elas são muito magricelas, e os gatos, muito naturalmente, preferem colos fofos. Como os bebés, aliás. Nem elas tão-pouco lhe deram alguma vez de comer. E, no entanto, desta vez, como sempre, assim que a Cláudia e a Vera chegaram, o bicho correu para elas e não as deixou mais. Elas sentaram-se muito juntinhas no sofá e o Zé refastelou-se, metade nas pernas de uma, metade nas da outra. Como se as duas tivessem um só colo, muito comprido — uma boa cama, embora dura.
Qualquer par de gémeos é sempre um pouco cómico. Estas, então, imaginem: sempre juntas, sempre de auscultadores e a trocá-los — uma quer a toda a hora que a outra oiça uma música qualquer. O António farta-se de rir, mas elas não se sentem gozadas. Nunca amuam, riem-se simplesmente também. São muito boas pessoas.
A mãe do António foi mostrar à irmã as prendas de Natal que já tinha recebido de amigos: tudo roupinhas para o bebé. A tia Cristina até pensou: coitada da Leonor, também há-de gostar de receber coisas para ela! Ainda bem que lhe comprei um perfume.
De facto, não são só as crianças que precisam de mimo e, se a mãe do António tivesse lido os pensamentos da irmã, não teria depois dado tanta importância ao que ela disse.
— Ainda todas amarelas, vá que não vá. Mas as outras… Jesus, que foleiras! — disse a tia Cristina.
— Que mal é que têm?! — perguntou a mãe do António, a rir-se do entusiasmo com que a irmã protestava sempre, contra tudo e todos.
— Mas tu não vês que as cores não dizem?
— Olha, eu gosto… — arriscou a mãe do António.
— Também, tu gostas de tudo.
Foi só uma pequena falta de jeito, mas o certo é que a mãe do António ficou instantaneamente com um nó na garganta. Pôs-se a pensar no seu dia-a-dia, no que fazia e no que não fazia, no pequeno círculo de pessoas com quem se dava. Seria pouco?
A tia Cristina não tinha querido magoar ninguém, até porque ela não achava realmente que a vida da irmã fosse pobre. E quando a mãe do António se escapou discretamente para a casa de banho, só houve uma pessoa que percebeu que alguma coisa não estava bem: foi o tio Rui. A sensibilidade dele deve ser das mais inteligentes de Portugal — até faz impressão. E como a cunhada é das maiores amigas que ele tem, foi-lhe fácil passar o serão a conversar com ela e a pedir-lhe opiniões e conselhos. Aos poucos, a mãe do António foi voltando a gostar de si própria.
À meia-noite abriram-se as prendas. O António ficou um bocado decepcionado, porque queria um par de chuteiras e teve um par de sapatos. O que vale é que, com este par de inutilidades, os pais deram-lhe cinco volumes da colecção Langelot — agente secreto. Os avós desta vez não lhe deram peúgas, mas deram-lhe um pijama! Os tios é que lhe ofereceram uns binóculos fantásticos e as gémeas gravaram-lhe, da rádio, uma série de músicas da moda que não suportam, mas que sabem que ele adora. Foram impecáveis.
Ainda não eram oito da manhã quando o pai acordou bruscamente o António: a mãe tinha começado com dores, tinha de a levar à maternidade. Não sabia se ela ia ter o bebé já ou se voltava para casa. Talvez por não se terem completado ainda os normais nove meses de gravidez, o pai do António estava incrivelmente nervoso. Pegava em coisas e largava-as, esquecia-se do que estava à procura, mexia-se demasiado e nunca mais saía de casa. Por fim encostou-se a um móvel e pousou a testa na mão, com um ar desesperado. A mãe do António também já estava prestes a perder a calma, menos pelas dores do que pelo marido. E suplicava:
— Por favor, agora é a minha vez de estar nervosa e a tua de estares forte. Vamos embora!
O António estava apavorado, mas percebeu que tinha de arranjar forças para se conter. E então, dando umas palmadinhas no braço do pai, começou a falar-lhe com voz firme:
— Pai, quando fui eu, a mãe também teve dores, não foi? E depois passaram. A mãe não ficou com nenhuma raiva de mim, esqueceu tudo e ficámos os dois bem de saúde. Agora há-de ser a mesma coisa. E a mãe até faz ginástica para aprender a respirar bem e a ajudar o bebé a sair… não vai custar muito, pois não, mãe?
— Vai ser canja — respondeu a mãe.
Só quando se viu sozinho em casa é que o António pôde sentir medo à vontade. Sabia que não era canja. Mesmo tendo aprendido que as mulheres alargam durante a gravidez para o bebé poder passar, aquilo parecia-lhe uma grande violência.
A tia chegou para lhe fazer companhia e disse-lhe que o mais provável era terem feito mal as contas e o bebé estar já prontinho. Explicou-lhe também que o segundo filho custa sempre menos, principalmente quando a mãe é novinha, e que na família dele todas as mulheres eram boas parideiras, pelo que dali a uma hora já teriam com certeza notícias. E começaram a pensar em nomes.
— E se fosse Sebastião? — sugeriu o António.
— Não, que esse come tudo, tudo, tudo.
— E João?
— Não, que lá morreu o João Ratão, cozido e assado no caldeirão.
— E Rodrigo?
— Rodrigo é a paixão da Júlia. Não conheces? Eu conto.
E contou: o tio Rui e a irmã, a Júlia, cresceram numa quintarola, no Alentejo, onde havia um porquinho, muito gordinho e asseado, e mais meia dúzia de bichos: a porca, o porco, umas galinhas e um burro.
A Júlia era levada da breca. Gostava de correr e assustar as galinhas, de cavalgar e de enfeitar o burro com colares, chapéus e écharpes da mãe. E adorava o porquinho, a quem dera o nome de Rodrigo. Aqui é que começaram os problemas com os pais. Ora ia buscá-lo às escondidas, à noite, e o aconchegava entre as melhores camisolas ou as melhores mantas, numa gaveta aberta da cómoda do quarto; ora lhe punha uma babete e lhe dava às colheres dos melhores doces de ovos que havia na cozinha; ora tentava levá-lo às cavalitas, muito curvada e vermelha com aquele peso, quase a deixá-lo cair. Os pais tentaram tudo para a «curar» daquele amor. Primeiro tentaram convencê-la de que tudo aquilo era mal empregue num porco. Resposta da Júlia: «Devemos tratar bem os nossos amigos e ele é o meu maior amigo». Depois argumentaram que era bom ela fazer novos amigos, desta vez pessoas. Resposta da Júlia: «Mas quando fazemos novos amigos devemos esquecer os outros?». A seguir explicaram-lhe que as pessoas só brincam com animais de estimação, como cães, gatos, etc… e que os porcos eram animais úteis, bons no prato. Aí a Júlia desatou a berrar que o amigo dela não era só um porco, era o Rodrigo, que ela estimava muito; e que se alguém voltasse a falar em cozinhar o Rodrigo, ela deixava de comer o que quer que fosse. O pior é que os pais tinham a certeza absoluta de que ela faria tudo o que estava a dizer.
A Júlia cresceu e o Rodrigo também. O tio Rui casou e mudou-se para Lisboa, onde conhecera a tia, e a Júlia só não casava porque não queria. Finalmente, houve um namorado que concordou que os ares de Lisboa não eram bons para o Rodrigo e que era melhor ficarem todos na terra deles. Casaram, lá estão, e não hão-de deixar nunca que alguém coma carne de Rodrigo à alentejana. Há-de morrer de velho, este porco.
Acabada a história, tocou o telefone. Foi a tia Cristina que atendeu e, pela cara dela, o António percebeu logo que estava tudo bem. O parto tinha sido fácil, a mãe estava bem e já podia receber visitas, o bebé era pequenino e tinha de ficar ali uns dias sob vigilância, mas também parecia estar muito bem. E era uma menina! O António percebeu então que tinha sido um disparate preferir um irmão, pensar em nomes de rapazes e planear jogos de bola: agora estava tão contente com a irmã! Como era dia de Natal, o António decidiu que tinha de dar um presente à irmã e pediu por isso à tia Cristina que o levasse a uma loja de brinquedos, de caminho para a maternidade. Ela lembrou-lhe que todas as lojas estavam fechadas, mas que seria muito engraçado se o António desse à irmã o urso de que ele mais gostava quando era pequeno. Ele achou uma boa ideia e foram os dois fazer um grande embrulho, com uma fita cor-de-rosa, porque era para uma menina.

Mónica Leal da Silva
O melhor Natal do António
Lisboa, Edições Cotovia, 1993

A caixinha de beijos


Há algum tempo, um homem castigou a sua filhinha de três anos por desperdiçar um rolo de papel de embrulho dourado.
O dinheiro era pouco naqueles dias, razão pela qual o homem ficou furioso ao ver a menina a embrulhar uma caixinha com aquele papel dourado e a colocá-la debaixo da árvore de Natal.
Apesar de tudo, na manhã seguinte, a menina levou o presente ao seu pai e disse: “Isto é para ti, Papá!”
Ele sentiu-se envergonhado da sua reacção furiosa, mas voltou a “explodir” quando viu que a caixa estava vazia.
Gritou e disse: “Tu não sabes que, quando se dá um presente a alguém, se coloca alguma coisa dentro da caixa?”
A menina olhou para cima, com lágrimas nos olhos, e disse: “Oh, Papá, não está vazia. Eu soprei beijos para dentro da caixa. Todos para ti, Papá.”
O pai quase morreu de vergonha, abraçou a menina e suplicou-lhe que lhe perdoasse.
Dizem que o homem guardou a caixa dourada ao lado da sua cama durante anos e, sempre que se sentia triste, mal humorado, deprimido, pegava na caixa e tirava um beijo imaginário, recordando o amor que a sua filha ali tinha colocado.
De uma forma simples, mas sensível, cada um de nós tem recebido uma caixinha dourada, cheia de amor incondicional e de beijos dos nossos pais, filhos, irmãos e amigos…
Ninguém possui uma coisa mais bonita do que esta.

Vela: uma luz


Durante o Advento, gostamos de nos sentar diante de uma vela acesa, procurando encontrar, na sua luz, a paz. As velas, os castiçais, exerceram, desde sempre, sobre os homens uma atracção particular. A sua luz é cheia de doçura. Ao contrário do néon, cuja luz é tão crua, a luz da vela só ilumina o espaço à nossa volta, deixando tudo o resto na penumbra. O seu brilho difunde-se num ameno calor. Não se trata de uma fonte de iluminação artificial que deve expandir-se igualmente sobre todas as coisas. Pelo contrário, a luz da vela possui, na sua essência, as qualidades do mistério, do calor, da ternura. À luz da vela podemos olhar-nos a nós próprios; percebemos então, com um olhar mais doce, a nossa realidade, muitas vezes tão dura. Esta doçura dá-nos coragem para nos vermos tal como somos, e para assim nos apresentarmos diante de Deus. Podemos então aceitar-nos a nós mesmos.
A luz da vela não ilumina apenas, ela também aquece. E, além disso, com o seu calor, traz o amor para o nosso espaço. Preenche o nosso coração com um amor mais profundo e mais misterioso do que o dos seres aos quais nos sentimos unidos: um amor que provém de uma inesgotável fonte divina, um amor que não é frágil como aquele que trocamos entre nós, humanos.
Se deixarmos que essa luz penetre no nosso coração, podemos então sentir-nos plenamente queridos, com um amor que torna tudo, em nós, digno de ser amado.
É, afinal, o amor de Deus que vem até nós nesta luz da vela. A luz nasce da cera que arde: imagem de um amor que se consome. Ela dura enquanto dura a cera, sem pretensões de economia. No entanto, é preciso, por vezes, diminuir a mecha, sem o que a chama pode subir demasiadamente alto e espalhar a fuligem à sua volta. Há também uma forma de amar demasiadamente intensa, na qual nos esgotamos de modo excessivo. Um tal amor não faz bem, nem a nós próprios nem aos outros, que são sensíveis ao que nele há de “fuligem”: as intenções subjacentes, o excesso de vontade, o artifício, tudo o que faz com que esse amor não traga luz aos outros, mas antes obscuridade.
A vela compõe-se de dois elementos. Há em primeiro lugar a chama, símbolo da espiritualidade que se eleva até ao céu. Conta a lenda que a oração dos padres do deserto transformava os seus dedos em chamas de fogo. A vela que arde é pois uma imagem da nossa prece. Assim os peregrinos gostam de acender, uma vez chegados ao fim da sua viagem, um círio que colocam no altar ou diante de uma estátua da Virgem, persuadidos de que a sua oração durará enquanto durar a chama. Esperam deste modo que a oração possa trazer luz às suas vidas e ao coração daqueles por quem acenderam o círio.
O segundo elemento da vela é a cera que se consome. Para a Igreja dos primeiros tempos, a vela, o círio, era, por isso mesmo, um símbolo de Cristo, Deus e homem ao mesmo tempo. A cera é a imagem da sua natureza humana que ele sacrificou por amor a nós, e a chama é a imagem da sua divindade. As velas que acendemos durante o Advento e no Natal lembram-nos assim o mistério da Encarnação de Deus em Jesus Cristo.
Nessa vela, é o próprio Cristo que se torna presente entre nós, e é ele que, com a sua luz, ilumina a nossa casa e o nosso coração, e os aquece com o seu amor. E é precisamente através da sua natureza humana que resplandece a natureza divina de Jesus. A vela mostra-nos pois, também, o mistério da nossa própria encarnação. Através do nosso corpo, é Deus que deseja fazer brilhar a sua luz neste mundo. Desde o nascimento de Jesus que ela brilha em cada rosto humano.
A ti que me lês, desejo que leves a muitos outros seres, durante o Advento, uma luz que ilumine, com doçura, tudo aquilo que eles prefeririam não ver neles próprios. Tornar-te-ás então, para eles, tal como a vela, uma fonte de vida e de amor.

Anselm Grün
Petite méditation sur les fêtes de Noël
Paris, Ed. Albin Michel, 1999