Reflexão de uma professora sobre a componente comum da prova de avaliação de conhecimentos e capacidades dos professores

Na miserável existência que é a vida de um professor detive-me, hoje, porque estava sol e decidi preguiçar um pouco (às vezes ainda mo permitem ao domingo) a analisar o modelo de prova que pretendem aplicar aos meus colegas “destratados”. Sim, destratados, porque a prova, tirando uma única questão de reconhecida importância, pois aborda a frequentemente incorreta separação do sujeito e do predicado, tudo o resto me pareceu burlesco e até ominoso. Não consegui vislumbrar o que se pretende aferir ali; uma questão de desenvolvimento que pouco tem para desenvolver, com um tema puído que poderá servir para adormecer uma insónia; uma outra questão que, aparentemente de lógica, me parece intencionalmente entretida a saber se os professores conhecem o abecedário e uma outra que entrelaça promiscuamente uns círculos que decidem das atividades que alguns alunos frequentam. Bem! Posto isto, que dizer?

Não seria mais sério, mais franco, mais transparente comunicarem que apenas pretendem despedir e extorquir uns trocos aos futuros desempregados? Não seria menos hipócrita, menos obsceno e menos atrabiliário darem a cara e usarem como arma o respeito por quem trabalha na formação de gerações futuras, dignificando uma classe escravizada e torturada diariamente por uma oligofrenia desenfreada?

E que dizer daqueles que se ofereceram para coveiros dos colegas?

A mim, parece-me óbvia a resposta. E a vós?

Vá, lá, conhecem aquela que diz “o respeitinho é muito lindo”?

Pois é. Sejam lindos!!

Lídia Peixoto

24 de Novembro de 2013

e então… lemos.

Chronicles-of-narnia-map

 

Este ano tenho um quinto ano de Português… muito barulhento. E ainda por cima, como sou directora de turma deles, raro é o da em que não tenho uma queixa. Portam-se mal, pronto. Falam muito. Fazem barulho.

Podem, portanto, imaginar o meu espanto ao verificar que nas minhas aulas, cada vez mais se… ouvem as moscas. Não se ouvem moscas, que não as há, mas ouvir-se-iam, se as houvesse.

Hoje, por exemplo. Entrámos às oito e meia e, nada mais sentarem-se, comecei a ler.

Estamos a ler As Crónicas de Nárnia, comecei, naturalmente, pelo primeiro volume, O Sobrinho do Mágico, e a reacção deles está a ser… um sonho.

Não pare, professora!

Continue, por favor!

Só a primeira página do capítulo…

Só mais um bocadinho…

Não temos um livro para cada aluno, nem sequer um livro em cada mesa, que a biblioteca da escola não chega a tanto. Eu leio, eles ouvem. E ouvem deliciados.

Este livro é riquíssimo. Não apenas pelo trabalho de estímlo à imaginação, mas também pela linguagem. Isto é Literatura, assim, com letra maiúscula, no mais puro sentido do termo. Não é de admirar que faça as delícias de sucessivas gerações e que conheça várias adaptações ao cinema.

Depois da leitura – e porque não convém esquecer que estamos em aula de Português e a (nossa) vida (infelizmente) não é só Nárnia, estivemos a conversar sobre verbos introdutores do diálogo. E, também neste aspecto, este livro é de uma riqueza extraordinária.

Respondeu, retorquiu, disse, perguntou, segredou, replicou, repetiu, prosseguiu, interrompeu, comentou, exclamou, confirmou, gritou, reclamou, concordou, adiantou, sugeriu, contrapôs, murmurou, tratamudeou, declarou, insistiu, explicou, acusou, bradou…

E todos estes só hoje, em dois capítulos.

(Permitam-me este comentário e por favor não me crucifiquem: em A Floresta, de Sophia de Mello Breyner, por exemplo, isto é bem diferente. No primeiro diálogo entre Isabel e o anão, quando se conhecem, o único verbo utilizado é o verbo dizer. E nós que passamos a vida a dizer aos alunos que têm de variar, que não podem usar sempre disse, disse, disse… Sim, eu sei que há uma (UMA) excepção neste diálogo a que me refiro.)

O que eu quero dizer é apenas isto: pensem no Daniel Penac. Pensem em Donalyn Miller. Pensem em Jim Trelease. Leiam. Invistam tempo das vossas aulas na leitura. Ensinem o gosto pela leitura através da leitura e não com teorias estéreis.

Ou deveria dizer, talvez: descubri vós, professores, o prazer da leitura, o prazer supremo de ler uma história, de rir e chorar com as personagens. De descobrir mundos novos.

Repito o que já disse muitas vezes: se os meus alunos (que não são meus amigos aqui no Facebook, mas que seguem, alguns deles, aquilo que torno público, como por exemplo esta Nota) saírem das minhas mãos com o bichinho da leitura, eu terei alcançado o meu objectivo mais querido, aquele que me faz sair da cama todos os dias de manhã.

E, apenas para terminar: eu não coloco aqui fotografias de crianças. Nem das minhas filhas, nem dos meus alunos. Mas a sério que hei-de fotografar a minha Elisa, a minha Telma e os outros todos. A imagem dos vossos olhos, muito abertos, que não pestanejam enquanto leio, é uma imagem que guardarei para sempre.

Na primeira pessoa

Hoje apetece-me. Ando há muito para fazer isto, e hoje é dia.

Este é o primeiro de uma série de pequenos segmentos da Grande Reportagem SIC que foi para o ar em Janeiro de 2012. Falava sobre o projecto de leitura que implementei com muito sucesso junto dos meus alunos do 2º ciclo – e que continuo a implementar, tendo alargado o público-alvo.

Neste primeiro vídeo, sob o olhar atento de um relógio que pára, cada aluno lê uma primeira frase de um conto diferente, dando uma ideia da variedade de temas sobre os quais lemos.

Parecer sobre a Petição pela desvinculação de Portugal ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990

A pedido da Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura, expliquei, e está disponível aqui, por que subscrevo a Petição:

Guimarães, 30 de Junho de 2013

Excelentíssimo Senhor

Deputado José Ribeiro e Castro

Presidente da Comissão de Educação, Ciência e Cultura,

Assunto: Parecer sobre a Petição nº 259/XII/2ª: “Pela Desvinculação de Portugal ao ‘Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990’”

Em resposta ao solicitado por V. Exª através do V/ ofício nº 263/8ª – CECC/2012, venho por este meio pronunciar-me em relação à aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (AO90) na qualidade de cidadã, de professora de Português, de encarregada de educação e de presidente da Associação de Pais da Escola EB 1/JI de S. Roque, Guimarães.

“A peculiar tarefa da Economia consiste em demonstrar aos homens

quão pouco conhecem daquilo que imaginam poder controlar.”

F. Hayek

Esta afirmação de Hayek, galardoado com o Prémio Nobel da Economia em 1974, aplica-se não apenas à área específica a que se refere, mas a todas as áreas em que existe acção humana.

A evolução natural da língua, por oposição à evolução por decreto, passa pelo contributo de cada indivíduo. A língua resulta da interacção dos indivíduos entre si. A sua evolução é uma evidência; no entanto, ela consiste num processo natural, contínuo, e não pode resultar de uma imposição política centralizada. A linguística resulta da observação de como os falantes de determinada língua a utilizam.

Tal como na Economia, em que tentativas de intervenção, ainda que bem-intencionadas, conduzem a efeitos perniciosos não previstos, também a manipulação exógena da língua conduzirá a efeitos não desejados que já se observam na sociedade em geral, numa fase ainda muito inicial da aplicação do AO90. Verifico situações desta natureza em sala de aula: alunos já portadores de dificuldades de leitura, que não conseguem, em todas as situações, socorrer-se do contexto para decifrar de que palavra se trata, que hesitam muito mais ainda na leitura de palavras que passam, artificialmente, a ser homófonas, como no caso de recepção/*receção e recessão. Na tentativa de ler segundo a regra, que foi alterada artificialmente, o leitor é induzido em erro.

Desta supressão injustificada das consoantes ditas mudas resultará inevitavelmente o fechamento das vogais que as antecedem. Estes casos já se verificam. De facto, se ouvirmos atentamente um serviço noticioso na televisão, em qualquer canal, verificaremos que os próprios jornalistas começam a fechar vogais que são abertas – pela ausência da consoante que indica a correcta pronúncia da palavra em questão. Esta situação é particularmente grave na medida em que os apresentadores de serviços noticiosos são, por inerência, transmissores da língua, sendo, portanto, sua obrigação utilizá-la exemplarmente.

Se estas situações já sucedem tão pouco tempo após a implementação do AO90, em que todas as pessoas aprenderam a escrever segundo as regras (ainda) em vigor, podemos facilmente imaginar que, dentro de alguns anos, a esmagadora maioria dos portugueses pronunciará como fechadas vogais que devem ser abertas. Veja-se o exemplo de oficial, em que a ausência do f dito mudo conduziu a que todos fechassem a pronúncia do o inicial. Dentro de poucos anos, com a aplicação das regras definidas pelo AO90 no que diz respeito à supressão das consoantes ditas mudas, assistiremos, inevitavelmente, a inúmeros casos desta natureza.

A presença destas consoantes, ditas mudas, pode, aliás ser um meio de aprendizagem facilitador para os que estudam Português como língua estrangeira, precisamente por indicarem como devem pronunciar-se as vogais, aspecto que constitui a maior dificuldade para os falantes não nativos.

Em alguns países, como Angola e Moçambique, realizaram-se estudos sobre o impacto económico da aplicação do AO90. Tais estudos, se foram realizados em Portugal, não são do conhecimento público. Na qualidade de professora, de Encarregada de Educação e de dirigente de uma Associação de Pais, não posso deixar de me preocupar muito com as bibliotecas escolares. É do domínio público que, nos últimos dez anos, foram investidas somas avultadas nas bibliotecas escolares em todo o país. Todos esses livros terão, a partir da implementação do AO90, um único fim possível: o lixo. Todos os livros existentes nas bibliotecas escolares deverão estar escritos de acordo com a ortografia que as crianças estão a aprender, sob pena de dificultarmos a sua aprendizagem da língua materna – que se reveste já de tão grandes dificuldades para todos: falantes nativos e não nativos. Será necessário um esforço financeiro gigantesco, e injustificado, para repor as bibliotecas em todas as escolas, em todo o país. Este aspecto tem de ser do agrado das editoras, que são o grupo de pressão que mais tem a ganhar com a aplicação do AO90. Quanto tempo teremos, pais e alunos, de esperar até que as novas bibliotecas estejam prontas? Demorará certamente muitos anos, porque estamos a falar de muitos milhares de volumes em cada escola, em todas as escolas do país. E este é um custo que terá de ser assegurado exclusivamente pelo Estado, em virtude de ser o Estado o único responsável pela criação injustificada da necessidade de substituir todos os livros. Esta questão seria sempre pertinente, mas reveste-se de uma importância ainda maior dada a conjuntura económica que vivemos.

O argumento de que a nova ortografia facilitará a aprendizagem da escrita e reduzirá a ocorrência de eros ortográficos é falso. A tentativa de simplificar as regras não se traduz em menos erros ortográficos. A sustentação de que tal se observará é tão válida como tentar solucionar um problema de sobreaquecimento de uma máquina retirando-lhe o termóstato…

Por outro lado, os erros ortográficos com que me deparo no que escrevem os meus alunos, que frequentam o segundo ciclo de escolaridade, são tão graves e de tão variada natureza, que nenhum “acordo” tem o poder de remediar a situação. Como exemplos, posso referir que escrevem *ção, referindo-se ao seu animal de estimação, e grafam a expressão de repente como uma só palavra: *derrepente. Estes são apenas dois exemplos de que há muito a fazer pela literacia dos portugueses. Não devemos centrar esforços em promover artificialmente uma nova forma, errada, de escrever, mais ainda quando essa mesma reforma é contrária não só à maioria dos pareceres técnicos, de linguistas, mas conhece o repúdio de dois países que supostamente deveriam aprová-la e um outro país adia sucessivamente a sua aplicação. Do que Portugal precisa é de um investimento muito grande – não apenas de dinheiro, mas sobretudo de trabalho – na promoção da leitura, que é o único meio de promoção efectiva da literacia.

A aceitação de diferentes grafias como válidas é a negação do próprio conceito de norma ortográfica e constitui algo insustentável em contexto de sala de aula. Por outro lado, a consagração de uma forma ortográfica pelo uso leva-me a perguntar se poderemos aceitar *cabo como correcto, enquanto primeira pessoa do singular do verbo caber. Está consagrado pelo uso…

Aproximar a grafia da pronúncia é algo verdadeiramente perigoso. Veja-se quantas pessoas pronunciam *apois (depois). Como explicar, então, que se trata de um erro ortográfico, se podem contrapor com uma “regra” que prevê que se escreva conforme se fala? Mesmo sabendo que esta regra não é de aplicação universal, a facultatividade e a coexistência de duplas grafias não são compatíveis com um ensino de qualidade.

Devemos também considerar que, em virtude de não existir ainda um Vocabulário Ortográfico Comum (VOC), apontado no próprio texto do AO90 como condição essencial para a sua aplicação, vivemos nas escolas uma situação muito complicada, derivada das duas leituras, em alguns aspectos importantes divergentes, que os dois grandes grupos editoriais que dominam o mercado dos livros escolares fazem do texto do AO90. De facto, basta uma comparação entre um dicionário do grupo Porto Editora e um outro de uma das editoras do grupo Leya para compreendermos que existem interpretações diferentes de alguns aspectos do AO90. Daqui resultam grafias diferentes da mesma palavra nos manuais escolares, consoante sejam publicados por editoras pertencentes a um ou ao outro grupo. Os estudantes podem deparar-se com a mesma palavra grafada de maneira diferente em dois manuais escolares ou outros materiais de apoio ao estudo. Isto pode acontecer nos manuais adoptados para as diferentes disciplinas num mesmo ano lectivo, mas também nos manuais adoptados na mesma disciplina em anos diferentes… ou, no caso dos alunos mais aplicados, numa mesma sessão de estudo em que recorrem a mais do que um manual. Daqui podem surgir situações embaraçosas para os professores: na mesma turma, em anos lectivos diferentes, utilizando manuais de diferentes editoras, surgem palavas grafadas de uma e de outra maneira. O que fazer? O que dizer aos alunos? Recorrer a que materiais de apoio para tirar dúvidas? “Porque sim” é uma resposta que não cabe numa sala de aula. Quando um aluno questiona a ortografia de determinada palavra, o professor socorre-se do étimo para esclarecer. “Porque sim” passará a ser a única resposta possível a muitas destas perguntas. O que é inaceitável.

A confusão, a que alguns chamam “caos ortográfico” está patente até no Ofício que me dirigiu V/ Exª, a que esta carta responde: grafam junho, Agosto e julho…

O Inglês é, em todo o mundo, a língua mais estudada como língua estrangeira. A maior parte dos estudantes de Inglês como segunda língua aprende a sua variante Britânica. No entanto, a variante Americana é aquela com que nos deparamos mais vezes no cinema, na música, na literatura científica. As diferenças entre estas duas variantes, que se observam na grafia, na pronúncia e no próprio léxico, não tiram o sono à Rainha de Inglaterra nem ao Presidente dos Estados Unidos, e também não afastam milhões de pessoas, em todo o mundo, que utilizam o Inglês como segunda língua. O que acontece, então? As editoras de dicionários, em ambos os lados do Atlântico, assinalam as diferenças de grafia, pronúncia e/ou significado, quando aplicáveis, e não pensam mais nisso.

Por que não podem as editoras portuguesas e brasileiras fazer o mesmo?

E por que não podem os Governos de ambos os países abster-se de regular algo que não é regulável por decreto?

E por que insistem em fazê-lo, sabendo que há um conjunto muito grande de efeitos indesejados, sobretudo no que diz respeito a mudanças na pronúncia de muitas palavras, que se observarão inevitavelmente?

A aplicação destas novas regras ortográficas não é de qualquer utilidade, visto que não se alcança sequer a tal unificação ortográfica com o Português do Brasil, já que são múltiplos os casos de duplas grafias que o AO90 prevê. Tal unificação seria sempre, de resto, inalcançável, porquanto o oceano que nos aparta é ilustrativo da distância cultural que separa os dois países.

A iniciativa dos autores da Petição em epígrafe reveste-se, portanto, de interesse nacional, na medida em que visa defender a Língua Portuguesa como património linguístico e cultural enriquecido pelas diferenças que lhe impõem os falantes dos diversos países que a utilizam, e pertencente a todos nós – utilizadores do Português de todas as partes do mundo, de hoje e de sempre.

Com os melhores cumprimentos,

Eduarda Abreu

Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses e Ingleses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto;

Professora de Português e Inglês no segundo ciclo do Ensino Básico, a leccionar na Escola EB 2/3 de Paredes;

Mãe de uma aluna do segundo ano de escolaridade e de uma aluna em idade pré-escolar;

Presidente do Conselho Executivo da Associação de Pais da Escola EB 1/JI de S. Roque, Guimarães;

Autora do projecto de leitura para-escolar “Conto Contigo”, tema da Grande Reportagem SIC “Acrescenta um Conto”, 2012: https://www.dropbox.com/lightbox/home/Eduarda%20%C2%AB-%C2%BB%20Rui%20Faria%20(1)

http://sicnoticias.sapo.pt/programas/reportagemsic/2012/01/11/acrescenta-um-conto

A prenda de fim-de-ano

Chegaram as férias. As da grande são oficiais, estão consagradas no calendário escolar. As da pequena são oficiosas, estão indexadas às da irmã. O que vale ter uma avó sempre desejosa de ver as meninas livres da “prisão”…

Uma teve boas notas, tem sempre. A outra não tem notas, mas traz todas as boas informações que poderíamos desejar, portanto…

Portanto é-me muito difícil resistir à tentação de as encher de prendas. Deve acontecer com todas as mães. Por mim, se não dou muitas prendas todos os dias é por causa do exagero, não só dos presentes em si, mas também do dinheiro que tal representaria.

Estes dias, pus-me a pensar e era preciso decidir. Um jogo, com que brinquem neste Verão tão tímido. Um brinquedo. Uma boneca nova. Há sempre a hipótese de um livro, que faz as delícias tanto de uma como da outra. Mas já temos tantos em casa. E a mais velha já está na fase em que os lê uma vez e depois disso já são repetidos. Nunca foi tempo de gastar dinheiro à toa, mas nos dias que correm ainda menos. E o dinheiro gasto em livros é tudo menos “à toa”, mas… Uma boa prenda seria tempo passado com elas, sem relógio nem Internet nem telemóvel. Mas para as minhas férias a sério ainda falta. Depois vão ser prolongadas, mas isso é outra coisa. E não é agora.

Decidi que merecem tudo isto. Porque merecem. E então, para cada uma, arranjei um Cartão da Biblioteca. O presente mais barato, aquele cujo valor é inestimável. Trouxe três: um para cada uma.

E então é onde passaremos hoje a tarde. Na Biblioteca Municipal Raul Brandão, aqui em Guimarães.

Ou não. Não sabemos onde os livros nos levarão…

cartão biblioteca

Flora e o violino

Esta manhã, Flora chegou à estação do comboio. A grande estação da grande cidade.

Ontem, caminhou todo o dia para apanhar o comboio.

Viajou toda a noite.

Viajou, ou melhor, fugiu, porque há guerra no seu país.

Uma explosão assustadora, a casa em fogo, e ninguém para apagar o incêndio que começava.

Por isso, Flora enfiou à pressa alguma roupa na mochila, depois pegou no ursinho e não esqueceu a caixa com o violino. E com os pais, fugiu para longe da sua aldeia.

Quando descem do comboio, já estão noutro país. As pessoas têm um ar apressado, falam uma língua esquisita. Flora vê que fazem gestos mas não percebe o que dizem.

Sente-se perdida…

Felizmente umas pessoas muito generosas emprestaram uma casa aos pais de Flora. E na escola do bairro há um lugar para ela, na classe dos mais novos. Vai poder aprender francês, a língua esquisita que ouviu na estação.

No primeiro dia, o pai acompanha-a à escola.

Assim que a vêem, os meninos começam a fazer troça dela.

— Olha, tem os cabelos cor de laranja!

— E a cara cheia de sinais!

— Não é de cá! De onde é que tu vens?

— Olha os óculos! Eh, tiraste-os à tua avó, ou quê?

Todos se riem. Todos, menos Flora.

Esta manhã, Flora trouxe o seu violino. Depois das aulas vai à escola de música. Ao verem a caixa, os meninos voltam a troçar dela.

— O que é aquilo? A caixa da metralhadora?

— Não, é o cesto de ir ao mercado. Ela só come peras!

— Cuidado, ela escondeu um crocodilo lá dentro!

Todos se riem. Todos, menos Flora. Até fica cada vez mais triste mas ninguém se dá conta.

Ninguém, excepto António que, à saída da escola, se abeira dela.

— Vais para casa, Flora?

— Não, vou escola música.

— Fazer o quê? — pergunta António.

— Tocar violino…

— Queres que vá contigo?

Flora sorri e faz que sim com a cabeça.

Nesta escola ouve-se música por todo o lado, por detrás de cada porta. António reconhece o som de um piano, de um trompete e de uma flauta.

O professor da Flora é muito simpático e deixa o António ficar na sala, com a condição de não perturbar.

Flora toca bastante bem tanto a solo, como em duo com o professor. António escuta-os sem se mexer.

Um dia, na escola, as crianças estavam a fazer um desenho quando, de repente, grandes nuvens escuras cobrem o céu. Nuvens de tempestade, que deixam uma pessoa assustada. Os raios caem de todos os lados, o trovão ruge e estala como um chicote. Zás! Não há luz: foi um trovão que cortou a electricidade.

— Eu vou procurar velas, — diz a professora. — Fiquem tranquilos.

As crianças estão com muito medo. Gritam e escondem-se a chorar debaixo das mesas. Flora bem gostava de as acalmar. Mas como?

De repente tem uma ideia, uma ideia muito boa.

Muito devagar, tira o violino da caixa, depois o arco…

… Um… dois… três sons sobem na escuridão da sala de aula e balançam-se suavemente. Dir-se-ia uma canção de embalar. Depois, uma enfiada de notas forma uma dança. Como toca depressa, a Flora! Escolheu fazer o seu violino cantar uma toada do seu país. É alegre, triste, as duas coisas ao mesmo tempo. E graças a ela, todas as crianças esqueceram a trovoada.

Que pena! A electricidade voltou…

As crianças aplaudem.

— Obrigada, Flora, muito bem! — diz a professora. E depois acrescenta: — Para amanhã não há trabalhos de casa. Mas vão todos fazer um bonito desenho ou um poema para agradecer à Flora.

— Yupiii! — gritam os meninos. Agora todos querem ser amigos de Flora. Mas ela só tem um amigo: António. Ele acompanha-a todas as semanas à aula de música.

O professor de música deu ao António uma linda flauta.

— Experimenta tocar um bocadinho!

António experimentou e gostou muito do som da flauta. A partir de então, passou a tocar todos os dias.

Muito rapidamente, começou a tocar peças com Flora. Violino e flauta, flauta e violino, é muito divertido e tem uma certa magia…

— E se vocês fizessem um pequeno concerto na escola? — propõe o professor de música.

— Boa ideia! – exclama Flora. — E depois vamos ao hospital tocar para os meninos doentes. No meu país faz-se isso muitas vezes. A música ajuda a curar e a esquecer as preocupações.

— Que peças queres tocar, António?

— Uhm… As mais fáceis? Oh, e daí não, as difíceis também! Vou trabalhar todos os dias e fazer muitos progressos!

Os dois preparam então dez peças e, com a ajuda do professor, desenharam um cartaz muito bonito. Toda a escola vem ouvi-los. É um sucesso, um concerto magnífico! À saída, todos os meninos estão decididos a aprender a tocar um instrumento.

E depois?
Ora bem, Flora e António continuaram a tocar juntos.
PARA PRAZER DELES!
Viva a música!

Gerda Muller
Quand Florica prend son violon
Paris, L´école des loisirs, 2001
(texto adaptado)