e então… lemos.

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Este ano tenho um quinto ano de Português… muito barulhento. E ainda por cima, como sou directora de turma deles, raro é o da em que não tenho uma queixa. Portam-se mal, pronto. Falam muito. Fazem barulho.

Podem, portanto, imaginar o meu espanto ao verificar que nas minhas aulas, cada vez mais se… ouvem as moscas. Não se ouvem moscas, que não as há, mas ouvir-se-iam, se as houvesse.

Hoje, por exemplo. Entrámos às oito e meia e, nada mais sentarem-se, comecei a ler.

Estamos a ler As Crónicas de Nárnia, comecei, naturalmente, pelo primeiro volume, O Sobrinho do Mágico, e a reacção deles está a ser… um sonho.

Não pare, professora!

Continue, por favor!

Só a primeira página do capítulo…

Só mais um bocadinho…

Não temos um livro para cada aluno, nem sequer um livro em cada mesa, que a biblioteca da escola não chega a tanto. Eu leio, eles ouvem. E ouvem deliciados.

Este livro é riquíssimo. Não apenas pelo trabalho de estímlo à imaginação, mas também pela linguagem. Isto é Literatura, assim, com letra maiúscula, no mais puro sentido do termo. Não é de admirar que faça as delícias de sucessivas gerações e que conheça várias adaptações ao cinema.

Depois da leitura – e porque não convém esquecer que estamos em aula de Português e a (nossa) vida (infelizmente) não é só Nárnia, estivemos a conversar sobre verbos introdutores do diálogo. E, também neste aspecto, este livro é de uma riqueza extraordinária.

Respondeu, retorquiu, disse, perguntou, segredou, replicou, repetiu, prosseguiu, interrompeu, comentou, exclamou, confirmou, gritou, reclamou, concordou, adiantou, sugeriu, contrapôs, murmurou, tratamudeou, declarou, insistiu, explicou, acusou, bradou…

E todos estes só hoje, em dois capítulos.

(Permitam-me este comentário e por favor não me crucifiquem: em A Floresta, de Sophia de Mello Breyner, por exemplo, isto é bem diferente. No primeiro diálogo entre Isabel e o anão, quando se conhecem, o único verbo utilizado é o verbo dizer. E nós que passamos a vida a dizer aos alunos que têm de variar, que não podem usar sempre disse, disse, disse… Sim, eu sei que há uma (UMA) excepção neste diálogo a que me refiro.)

O que eu quero dizer é apenas isto: pensem no Daniel Penac. Pensem em Donalyn Miller. Pensem em Jim Trelease. Leiam. Invistam tempo das vossas aulas na leitura. Ensinem o gosto pela leitura através da leitura e não com teorias estéreis.

Ou deveria dizer, talvez: descubri vós, professores, o prazer da leitura, o prazer supremo de ler uma história, de rir e chorar com as personagens. De descobrir mundos novos.

Repito o que já disse muitas vezes: se os meus alunos (que não são meus amigos aqui no Facebook, mas que seguem, alguns deles, aquilo que torno público, como por exemplo esta Nota) saírem das minhas mãos com o bichinho da leitura, eu terei alcançado o meu objectivo mais querido, aquele que me faz sair da cama todos os dias de manhã.

E, apenas para terminar: eu não coloco aqui fotografias de crianças. Nem das minhas filhas, nem dos meus alunos. Mas a sério que hei-de fotografar a minha Elisa, a minha Telma e os outros todos. A imagem dos vossos olhos, muito abertos, que não pestanejam enquanto leio, é uma imagem que guardarei para sempre.

A primeira ida à biblioteca

Eis o resultado da nossa expedição à Biblioteca Municipal Raul Brandão:

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Aceitam-se apostas: quem escolheu o quê?

Pois… não dá muito que pensar…

Que fascínio! Tantos livros! E um desabafo que me encheu de baba: Aqui há mais livros do que em casa… É que é mesmo a primeira vez que lhes acontece entrar num sítio onde há mais livros do que cá em casa.

Numa nota mais prática: a peqena trouxe livros que a fascinaram e que, sobretudo no caso do Homem-aranha, já não deve ser possível encontrar na livraria.

A grande trouxe um das Tea Sisters que procurava há muito, mas que ninguém tinha para emprestare custa à volta de oito euros. Ao outro , tive-o na mão ontem, na Fnac. Estava em promoção, tinha desconto de 40%. O preço de capa era €8,80. Poupei um pedaço, digam lá.

A menina que detestava livros

Vídeo

Como explicar que filho de peixe não queira nadar?
Os pais de Mina gostam mito de ler. Estão sempre a comprar livros novos, que se amontoam um pouco por toda a casa. Mina tem imensos livros, que os pais lhe foram dando, ao longo dos anos, mas que ela se recusa a ler. Mina detesta livros. Até que um dia… porque tudo é sempre até que um dia e, nisto dos livros, esse dia é aquele em que se descobre que os livros são portas para lugares mágicos, para seres extraordinários e para experiências inesquecíveis. O caso de Mina não deixa de ser uma reacção ao tempo infindável que os pais passam a ler – um aspecto sobre o qual devemos meditar.
Este filme é sempre um dos preferidos dos meus alunos, mas como eu gosto sempre mais de livros, ofereço-lhes o conto. Se quiserem, já sabem: é só dizer e envio por mail.

A prenda de fim-de-ano

Chegaram as férias. As da grande são oficiais, estão consagradas no calendário escolar. As da pequena são oficiosas, estão indexadas às da irmã. O que vale ter uma avó sempre desejosa de ver as meninas livres da “prisão”…

Uma teve boas notas, tem sempre. A outra não tem notas, mas traz todas as boas informações que poderíamos desejar, portanto…

Portanto é-me muito difícil resistir à tentação de as encher de prendas. Deve acontecer com todas as mães. Por mim, se não dou muitas prendas todos os dias é por causa do exagero, não só dos presentes em si, mas também do dinheiro que tal representaria.

Estes dias, pus-me a pensar e era preciso decidir. Um jogo, com que brinquem neste Verão tão tímido. Um brinquedo. Uma boneca nova. Há sempre a hipótese de um livro, que faz as delícias tanto de uma como da outra. Mas já temos tantos em casa. E a mais velha já está na fase em que os lê uma vez e depois disso já são repetidos. Nunca foi tempo de gastar dinheiro à toa, mas nos dias que correm ainda menos. E o dinheiro gasto em livros é tudo menos “à toa”, mas… Uma boa prenda seria tempo passado com elas, sem relógio nem Internet nem telemóvel. Mas para as minhas férias a sério ainda falta. Depois vão ser prolongadas, mas isso é outra coisa. E não é agora.

Decidi que merecem tudo isto. Porque merecem. E então, para cada uma, arranjei um Cartão da Biblioteca. O presente mais barato, aquele cujo valor é inestimável. Trouxe três: um para cada uma.

E então é onde passaremos hoje a tarde. Na Biblioteca Municipal Raul Brandão, aqui em Guimarães.

Ou não. Não sabemos onde os livros nos levarão…

cartão biblioteca

O presente-surpresa do Rei Wod

santa

O rei Wod era muito, muito rico.

Tinha tanto dinheiro que podia encher a meia de Natal de todas as crianças do país – incluindo a tua, se lá morasses – e ainda lhe sobraria muito dinheiro. Por que razão, então, odiava ele o Natal?

A razão era esta. O Rei Wod queria um presente-supresa na manhã de Natal.

Só isso?

Aha… não esqueçamos quão rico ele era. Todos os anos, acontecia a mesma coisa. Por muito maravilhoso que fosse o presente que recebia, nunca era novidade. Por exemplo:

Um cavalo com cascos multicoloridos para andar sobre o arco-íris.

Um livro de respostas a todas as perguntas dos professores.

Um cesto de piquenique que brilhava no escuro quando o levávamos a uma festa depois da meia-noite.

Uma almofada para nos adormecer ao som de uma canção.

Uma poça de água para saltar dentro de casa sem molhar a carpete…

Para quê mais exemplos?

“Já tenho um desses”, dizia sempre o Rei Wod.

Um dia, bem cedo, numa manhã de Natal, mesmo antes de o sol nascer, o Rei perdeu a paciência. Deu um pontapé no trono, rasgou o manto em dois e atirou a coroa pela janela.

— Será que ninguém pode trazer-me um presente-surpresa? — gritou. — Chamem o feiticeiro real!

— Aqui me tendes, Majestade.

— Não fiques aí especado! Faz alguma coisa. Isto é uma ordem!

ABRA – CA – ZAM!

— O que é que aconteceu?

Num abrir e fechar de olhos, o Rei Wod encontrou-se numa floresta escura, coberta de neve.

— Onde estou? No Pólo Norte? — perguntou. — Esperem até eu regressar ao palácio. Aquele feiticeiro não sabe com quem se meteu!

Agora, porém, quem estava em apuros era o Rei Wod. Em alguns sítios, a neve chegava-lhe aos joelhos e, noutros, mesmo aos sovacos. O Rei não sabia onde se encontrava. Em breve estava tão hirto e gelado como um pingente de neve.

— Se não me mexer depressa, acabo por me transformar num pingente. Um pingente gigante. Alto lá, será que estou a ver além uma casa?

Suspirando de alívio, caminhou pesadamente até chegar a uma cabana minúscula, com o telhado coberto de neve, situada na orla da floresta.

A cabana estava vazia.

Não que estivesse abandonada. Havia uma lareira acesa, comida na despensa e mobília confortável na sala de estar.

— Onde estará o dono? — perguntou o Rei. — E porque não há decorações de Natal e uma árvore com luzinhas?

Na cabana não havia o menor indício de Natal. Excepto um calendário do Advento em cima do fogão de sala. Estava aberto no dia 24 de Dezembro.

— É véspera de Natal — disse o Rei.

Isto tornou a cabana ainda mais deserta. O Rei sentia-se só. Será que iria passar o primeiro Natal sozinho da sua vida?

— Para começar, é melhor aquecer-me. E tenho de me manter ocupado.

Foi divertido cortar uma árvore na floresta e colocá-la num canto da sala, especialmente depois de ter encontrado uma grande caixa com decorações de Natal no armário debaixo das escadas.

Também foi divertido pendurá-las, bem como acender a lareira e pôr a mesa para a ceia de Natal.

Depois de ter feito tudo isto, o Rei desenhou um cartão de Natal para o dono da cabana e colocou-o em cima da chaminé. Fez, em seguida, uma embalagem de oferta, dentro da qual colocou um bilhete:

Este espaço está reservado para um presente do Rei Wod. Pode ser um livro de respostas a todas as perguntas dos professores, um cesto de piquenique que brilha no escuro quando o levamos a uma festa depois da meia-noite, um cavalo com cascos multicoloridos para andar sobre o arco-íris… O que lhe apetecer. A escolha é sua.

Colocou, depois, a caixinha debaixo da árvore de Natal. Por último, pôs a mesa para mais uma pessoa.

— Nunca se sabe… — suspirou.

Adormeceu profundamente diante da lareira.

A claridade do dia acordou-o. A claridade e o tilintar de campainhas de trenó. A porta abriu-se de repente e um homem gorducho entrou. Exactamente o tipo de pessoa que esperaríamos ver num sítio como este. Como trazia geada nas sobrancelhas, gelo na barba, flocos de neve a derreter no fato vermelho, e um saco vazio, o Rei Wod demorou algum tempo a reconhecê-lo.

— Pai Natal! — arquejou.

— Como está? Quem é o senhor?

— Sou o Rei Wod. Desculpe esta…

— O Rei Wod?

O Pai Natal olhou o seu visitante com espanto.

— Isso quer dizer que a carta do feiticeiro era verdadeira? A carta que dizia que me ia trazer…

A voz do Pai Natal foi-se apagando, enquanto percorria com os olhos as decorações, a mesa de jantar, o cartão na chaminé, e o presente debaixo da árvore.

— Como é que sabia? — exclamou este.

— Sabia? — perguntou Wod. — Sabia o quê?

— Que nunca tive um Natal a sério?

— Nunca?

— Estou sempre demasiado ocupado antes do Natal. Depois fico demasiado cansado. E agora Vossa Majestade organizou tudo para mim. Que Deus o abençoe! Estou-lhe tão grato. Como se lembrou de um presente-surpresa tão bonito?

— Presente-surpresa?

— O meu próprio Natal — respondeu o Pai Natal. — É o meu primeiro Natal.

— É o primeiro que ofereço — disse o Rei, pensativo.

Mas deu-se logo conta de que não seria o último.

Wod nunca esqueceu a lição que o seu feiticeiro lhe deu. Faz sentido que, quando se é um rei que tem tudo, receber um presente-surpresa é difícil. Mas dar um é fácil.

Algum tempo depois, quando nomeou o feiticeiro seu Primeiro-Ministro, o Rei disse:

— Só há um pequeno problema. O que devo pôr na caixa que deixei debaixo do abeto? O Pai Natal não sabia de que presente gostava mais.

— É simples — sorriu o feiticeiro.

E sussurrou algo ao ouvido do Rei Wod.

Adorava dizer-vos o que ele sugeriu. Mas isso iria estragar a surpresa.

Chris Powling
Sally Grindley (org.)
Christmas stories
London, Kingfisher, 1994
Traduzido e adaptado

O papagaio que dizia “Amo-te”


 

Talvez por ser órfã de mãe e por o seu pai estar sempre fora de casa, Beatriz crescera triste e solitária. Na escola, chamavam-lhe “Beatriste”, porque se sentava sempre sozinha e não queria brincar com os colegas.

Em casa, depois de feitos os deveres, metia-se no quarto e lia até adormecer.

Beatriz tinha um pesadelo frequente: estava numa ilha deserta e não avistava nenhum barco. À noite, tinha frio e, de dia, fome e sede, pois o único alimento que havia na ilha era o coco. Ao acordar, Beatriz dizia para consigo: “Afinal, a minha vida é igual à do meu pesadelo”.

Não tinha amigos e os dias sucediam-se sem sentido, uns atrás dos outros, como cocos a cair de palmeiras.

Como dormia mal de noite, Beatriz acordava com sono e com poucas forças para falar com o pai. Este via o noticiário e saía logo a correr para o escritório, onde ficava a trabalhar até muito tarde. Quando voltava, já Beatriz estava a dormir, ou melhor, acordada, na sua ilha deserta cheia de coqueiros.

A menina interrogava-se se o pai gostaria mesmo dela ou se viera a este mundo por acaso, já que ele nunca a abraçava, beijava ou dirigia palavras de carinho. As conversas com ele eram sempre do género:

— Beatriz, não te esqueças, como ontem, do caderno dos deveres.

— Sim, papá.

— Já puseste o lanche na pasta?

— Sim, papá.

— Não atravesses a rua com o sinal vermelho ou amarelo!

— Sim, papá.

As trocas de palavras entre ambos não passavam disto, porque o pai, se calhar, era tão tímido como ela. Talvez ele também vivesse numa ilha, que barco algum jamais visitava…

******

Contudo, numa segunda-feira de manhã, aconteceu algo extraordinário que mudaria para sempre a vida de Beatriz.

Ainda não bem desperta, a menina teve a impressão de estar a ser observada. Todavia, ao abrir os olhos, viu que não havia ninguém no quarto. Nem se ouvia sequer o barulho da televisão, sinal de que o pai já tinha saído e lhe deixara o pequeno-almoço em cima da mesa.

Mas, quando olhou para a janela, Beatriz viu um papagaio grande e verde, pousado nas cordas do estendal. A ave olhava para ela de esguelha. Recuperada do susto, a menina perguntou-se de onde teria vindo aquele papagaio e o que faria ali, a espiá-la. Cheia de curiosidade, saltou da cama e abriu a janela para o ver melhor.

— Papagaio, pequenino, vem cá! — chamou-o em voz baixa, para não o assustar.

Tinha certamente escapado da casa de algum vizinho, pois logo respondeu ao convite de Beatriz, acercando-se dela.

— Perdeste-te? — perguntou a menina. — Vens de alguma ilha longínqua, cheia de palmeiras?

A ave pousou no braço de Beatriz, que a princípio se assustou. Porém, quando viu que o papagaio não a picava e que queria ser seu amigo, pô-lo no seu quarto, onde colocou um copo de água e um prato com migalhas de pão. Em seguida, saiu para a escola, muito feliz.

******

Ao meio-dia, telefonou ao pai para lhe contar o que se tinha passado e para lhe pedir que a deixasse ficar com o papagaio. Ia chamar-lhe Tequilha porque imaginava que ele tinha vindo de um país longínquo onde bebiam esse licor.

O pai falava pouco mas era muito atento. Por isso, quando Beatriz voltou da escola, já encontrou Tequilha instalado numa gaiola dourada, com o comedouro cheio de sementes de girassol.

— Olá! — cumprimentou-a, na sua voz estridente.

— Sabes falar! — exclamou a menina, admirada. — Ora vê se consegues dizer o meu nome: Beatriz, Beatriz, Beatriz…

Tequilha seguia atentamente a lição e movia o bico, mas não conseguia repetir o nome. Beatriz, que lera que os papagaios e os periquitos têm muita facilidade em pronunciar o “t”, disse-lhe:

— Chama-me então Beatriste, como fazem na escola. Beatriste, Beatriste…

Nem precisou de o repetir pela terceira vez, porque o papagaio logo exclamou:

— Beatriste!

A dona, orgulhosa, pulou de alegria. Depois de um dia tão bonito e emocionante, e logo após a empregada lhe ter servido o jantar, Beatriz deitou-se e adormeceu, cansada. Quando a luz da manhã a acordou, Tequilha estava a descascar uma semente, que segurava com uma pata.

— Bom dia, Tequilha! Não cumprimentas a tua Beatriste?

O papagaio acabou de descascar a semente, comeu-a com prazer e bradou:

— Amo-te!

Quando ouviu isto, Beatriz não conteve um grito de emoção. Depois, pensou que não era normal que o papagaio tivesse dito uma expressão típica de um galã de telenovelas. Será que vira muitas ou teria pertencido a algum par de recém-casados?

Podia ser apenas uma casualidade. Os papagaios brincam com as palavras que vão ouvindo e, por vezes, dizem coisas com sentido.

“Deve ser isso”, pensou Beatriz.

Contudo, na manhã do dia seguinte, Tequilha acordou-a com uma saudação igual:

— Amo-te!

— Quem te ensinou isso? — disse Beatriz. — Só os adultos usam essa palavra.

Como os papagaios falam, mas não conversam, Tequilha continuou a olhar para a sua dona e amiga com grande interesse, sem, contudo, dizer mais nada. Depois descascou outra semente.

Quando na quinta-feira, logo de manhã, o papagaio voltou a exclamar “Amo-te”, Beatriz resolveu investigar. Era estranho que as declarações de amor do papagaio só ocorressem de manhã. Quer de tarde quer à noite, Tequilha só dizia “Olá!”, “Beatriste” ou “Caramba!”.

******

Sabendo que o pai ainda estava a tomar o pequeno-almoço, Beatriz correu a expor-‑lhe o mistério. Mas o pai, muito vermelho e quase a engasgar-se, nada respondeu. Levantou-se, apressado, despediu-se da filha com um beijo e saiu de casa com a pasta.

De repente, Beatriz compreendeu o que acontecera e teve vontade de chorar. Só que de felicidade, desta vez! É que Tequilha repetia, cada manhã, o que o pai de Beatriz lhe dizia à noite, quando ela já dormia.

******

Agora reflete…

O Afeto

“O amor é a cura de todos os males”.

Leonard Cohen

Os sábios da Índia dizem que, quando olhamos para o mundo, o colorimos com as nossas próprias cores. Por isso, se olharmos os outros com ódio ou desconfiança, iremos receber ódio e desconfiança. Pelo contrário, se os virmos com amor, viveremos sempre rodeados de carinho.

E tu, como preferes viver?

Há quem tenha vergonha de expressar os seus sentimentos, mas isso não significa que não gostem de nós. Muitas vezes basta que lhes mostremos o nosso amor (com palavras amáveis, com um beijo, com um presente inesperado…) para nos abrirem o coração.

Se te custa dar carinho a alguém de quem gostas, imagina que o mundo vai acabar amanhã. O que farias hoje? Certamente correrias a abraçar os teus pais, irmãos e amigos. Dir-lhes-ias o quanto gostas deles, e falarias dos bons momentos que passaram juntos… Para fazeres isso, não é preciso esperar pelo fim do mundo! Podes começar hoje mesmo a dar-lhes afeto… mesmo que seja à tua maneira!

Mostra o teu carinho

Há muitas maneiras engraçadas e originais de demonstrar amor a quem te rodeia. Eis algumas:

a) Escrever um lindo poema no frigorífico com letras magnéticas.

b) Colocar um desenho muito alegre e bem colorido no seu quarto.

c) Compor uma canção para ele/a.

d) Oferecer-lhe um trabalho manual feito por ti.

Etc., etc.,…
Dr. Eduard Estivill; Montse Domènech

Cuentos para crecer: Historias mágicas para educar con valores

Barcelona: Editorial Planeta, 2006

(Tradução e adaptação)

O Dia-da-Presença

Jorge acabou os trabalhos de casa e preparou a mochila para o dia seguinte. Tinha agora tempo para brincar. Gostava de brincar aos astronautas mas, sozinho, não tem graça nenhuma.

Vai ver então o que a irmã está a fazer: sentada no tapete, ela tenta enfiar numa linha anéis de plástico às cores. É quatro anos mais nova e não percebe nada daquele jogo. Nem consegue somar um mais um…

“Que irmã tão palerma”, pensa Jorge. “Porque é que a minha irmã não podia ser antes um irmão mais velho? Ao menos agora tinha um co-piloto.”

Furioso, Jorge bate com o pé no chão.

— Vês? Deixei cair os anéis todos por tua causa! — grita a irmã que começa a chorar.

— Bem podes pendurar o teu colar nas orelhas! — grita Jorge ao sair do quarto.

— Mãe — pergunta Jorge na cozinha — queres ser o meu co-piloto? Vou voar agora para Júpiter.

— Para que é que tens a tua irmã?

Isto também Jorge se pergunta às vezes… Será que o pai tem tempo? Está sentado na sala a arrumar os jornais.

— Pai! — chama Jorge. — Vens voar comigo para Júpiter com a minha nave espacial “Estrela Branca”? Preciso urgentemente de um co-piloto.

— Agora não, Jorge. Bem vês que estou a arrumar os meus jornais.

Jorge fica a pensar no que pode fazer. Ir a casa do seu amigo António, ao lado? Às vezes brinca com ele. Mas brincar com os pais é sempre melhor. É quase como fazer anos.

Amuado, Jorge volta para o quarto dos brinquedos. Senta-se no tapete ao lado da irmã para ter alguém que o escute.

— Sabes o que é que eu gostava de ter? Mais um dia na semana — diz ele. — Um dia da semana em que os pais fossem só para nós. Um oitavo dia na semana. E sabes como se chamaria? Hum… deixa cá ver…

Jorge pensa. Diz o nome dos dias da semana em voz alta. Começa na terça-feira porque hoje é terça:

— Terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira, sábado, domingo… já sei! — exclama. Vai chamar-se presença. E vem logo a seguir ao domingo. Basta meter o dia-da-‑presença no meio dos outros dias.

Jorge põe-se em sentido em frente da irmã e diz em tom cerimonioso:

— Eu, piloto da nave espacial “Estrela Branca”, decreto que haverá o Dia-da-Presença, o dia da semana em que todos os pais brincarão com os filhos àquilo que os filhos quiserem. A partir de hoje, a semana passa então a ser: domingo, dia-da-presença, segunda-feira! E depois continua como normalmente.

A irmã ri-se.

Jorge escreve este desejo para o Natal. E escreve também porque é que quer o dia-da-‑presença: nesse dia, os pais hão de brincar com ele. O dia inteiro!

Mas os pais riem e dizem:

— Só tu! És um sonhador! — O pai faz-lhe uma festa nos cabelos. Depois agarra-o ternamente e abana-o, como se pudesse sacudir-lhe os sonhos da cabeça.

Pelo Natal, Jorge recebeu um gravador. Não um dia-da-presença. O que o gravador tem de bom é que a irmã não tem autorização para mexer nele…

Evelyne Stein-Fischer

Jutta Modler (org.)

Frieden fängt zu Hause an

Munique, DTV, 1989
(Tradução e adaptação)

Burros & Livros

Chama-lhes “biblioburros”. Os animais são baratos, fiáveis, não precisam de gasolina e vão a quase todo o lado. Um homem leva livros em cima de asnos a aldeias porque acredita que, se houver bastantes pessoas a apaixonarem-se pelas histórias, poderá quebrar-se o ciclo de 40 anos de violência entre os guerrilheiros e as forças paramilitares.
Todos os fins-de-semana, Luís Soriano e dois burros carregados atravessam montes e vales no Norte da Colômbia, onde aldeias como El Dificil e El Tormento receberam estes nomes, e bem, porque a única forma de lá chegar é através de trilhos tortuosos.

A missão de Soriano é quixotesca e a carga dos burros é preciosa: caixotes com 160 livros destinados às aldeias isoladas, onde os residentes não têm virtualmente acesso à leitura, para além de alguns textos da escola primária, em folhas já marcadas por muitas dobras, e Bíblias.
Há cinco anos, esta biblioteca itinerante, a que Soriano chama “biblioburros”, é a única nesta pobre e remota zona rural. “As pessoas daqui adoram histórias”, diz Soriano, de 32 anos, antigo livreiro de uma aldeia do estado da Magdalena. “E eu tento, à minha maneira, manter vivo esse entusiasmo.”
Soriano apaixonou-se pelos livros aos seis anos, e licenciou-se em Literatura espanhola depois de ter estudado com um professor que se deslocava à aldeia, duas vezes por mês. Esta paisagem rude, onde viveu toda a sua vida, poderá fazer despistar qualquer meio de transporte com rodas, enquanto os animais, penosamente, lá vão progredindo. “Os animais são baratos, fiáveis, não necessitam de gasolina e podem ir praticamente a todo o lado”, observa.
Numa pasta vermelha, Soriano guarda uma lista dos títulos que os aldeãos pedem com maior frequência. Embora a sua biblioteca itinerante inclua romances, histórias e textos medicinais, os livros mais populares são as histórias infantis com acontecimentos incríveis, em locais improváveis, onde os animais se assemelham aos homens e são os heróis. Talvez seja por isso que Soriano e os seus burros se enquadram tão bem aqui.
Antes da sua volta semanal, à noite, Soriano coloca os livros em bolsas de plástico individuais, fechadas em capas de lona. Arruma as capas em pacotes do tamanho de pastas, aconchegando-as em caixotes de madeira que prende nas selas dos burros. Soriano tem apenas duas regras para quem quer ler os livros: lavar as mãos e não escrever nas páginas. Ele sabe quem levou este ou aquele livro, mas declara confiar mais no sistema da honestidade. “Talvez seja uma das únicas bibliotecas do mundo onde as pessoas vêm com as suas mochilas e não são controladas à saída”, observa Soriano.
Antigamente, Soriano levava uma vida mais normal, pois era dono de uma loja de abastecimento e tinha uma família para criar. Lia por prazer e tinha em casa uma biblioteca com cerca de 80 volumes. Depois, começou a emprestar os seus livros, vasculhando, pedindo e emprestando para obter mais. Acabou por aumentar a colecção para 4800 livros. A sua mulher, Diana, estava cada vez mais desesperada com falta de espaço para criar os três filhos. “Ela costumava perguntar-me: O que vais fazer, comer livros com arroz?”, conta Soriano.
Há três anos, Soriano encontrou um patrocinador. Addis Marilyn, director da biblioteca municipal de Santa Marta, uma cidade a cerca de 300 quilómetros, situada na costa das Caraíbas, ouviu falar do que ele fazia e convidou-o para trabalhar como uma sucursal sua. Aproveitando a ideia de Soriano, Marilyn patrocinou outros dois projectos de “biblioburros”. Actualmente, os três partilham um orçamento que ronda os sete mil dólares (5700 euros).
Soriano diz não ter tido sorte ao pedir ajuda às autoridades locais para montar uma biblioteca decente, mas o governo nacional interessou-se mais. Ainda há pouco tempo, um senador propôs-lhe criar uma rede de bibliotecas transportadas por burros para todas as zonas rurais da Colômbia.
Para se preparar para esta viagem, uma jornada de três horas até à aldeia de Las Planadas, além dos livros, Soriano embalou também 40 máscaras de porquinho que conseguiu obter com a ajuda de Marilyn. Pretende distribui-las às crianças da aldeia antes de estas lerem “Os Três Porquinhos”. Como idealista que é, Soriano pensa que, se houver bastantes pessoas a apaixonarem-se pelas histórias, poderá quebrar-se o ciclo de 40 anos de violência entre os guerrilheiros e as forças paramilitares.
Os soldados paramilitares, que alegadamente usam os lucros da venda de droga para financiar um sistema de intimidação e ameaças de morte, controlam grande parte das aldeias da região. Mas Soriano diz que ele e os seus burros se mantêm afastados de tudo isso e, em troca, os militares respeitam-no. Muitas das crianças não sabem ler, por isso, ele ensina-as frequentemente. Por vezes, também ensina os pais.
Alberto Mendoza, de 11 anos, ajoelha-se juntamente com os outros. A sua família, ao contrário das das restantes crianças, tem um livro em casa. “Temos um livro”, declara, “A Bíblia.” Numa visita anterior, Soriano mostrara a Alberto um livro ilustrado sobre um filhote de urso que passa uma tarde inteira a construir castelos na areia e a regar um jardim cheio de flores com o seu avô. Hoje, esse mesmo livro encontra-se pendurado numa árvore. Quando Soriano termina a história e diz às crianças que podem escolher os livros que querem, Alberto corre para a árvore e agarra o livro do ursinho antes que alguém consiga lá chegar.

Colômbia / Missão Quixotesca / Texto: Monte Reel
Exclusivo Público/Washington Post